21 novembro, 2018

O marketing hipócrita


O marketing hipócrita


            Sinto-me ridícula quando saio do supermercado. As compras não são muitas, mas a tira de papel imprimido na caixa registadora, que resulta do meu pagamento, mede quase 50 cm, dividida em 3 ou 4 partes, de talões e talõezinhos de descontos disto e daquilo. Deveria sentir-me orgulhosa ou quiçá agradecida?
            Há o desconto da gasolina, o desconto da cafetaria, o desconto da tenda exterior, o desconto da lixívia e de todos os produtos de limpeza excepto os de promoção. Há descontos do dia e os descontos com prazo de validade para renovar outros descontos…
            Há uma máquina na entrada do supermercado que só imprime as senhas dos descontos a que cada um tem direito, caso me tenha esquecido dos talões em casa, e ainda há os descontos registados no telemóvel, caso me tenha dado um ataque de fúria e tenha atirado as senhas amassadas a cabeça da senhora da charcutaria. Aqui nada falha, as desmemórias não existem, que a entidade comercial está sempre atenta.  
            Essa máquina imprime senhas todas seguidinhas, coladas umas às outras, parecendo umas bandeirolas de enfeitar as árvores de Natal e eu entro no supermercado já a meio atrapalhada a ter que puxar dos óculos para selecionar 1 desconto entre as 20 senhas que saíram da máquina e que irei utilizar. Sofro do azar em que a maioria dos produtos que compro, nunca está em promoção. Como não as irei utilizar poderia oferecê-las a outro consumidor praticando a boa acção do dia, tal como faço aos tickets do estacionamento, mas não dá, elas são intransmissíveis. Dá-me a sensação que é como no euro milhões, se acerto só eu posso levantar a massa. Aí está uma sensação de segurança dada ao consumidor. Pena que nunca tenha ganho o euro milhões, aqui também nunca gastei os 20 descontos das senhas.
            O que é ridículo é nós consumidores, acreditarmos que nos estão a dar alguma coisa por simpatia, gentileza ou por sermos bons clientes. Puro engano, nós pagamos todos os descontos e todas as promoções, mas mesmo tendo consciência disso, o grande estratega comercial/marketing inventou e urdiu uma teia em volta do consumidor, muito eficaz, convertendo-o no seu cúmplice - as compras do supermercado proporcionam desconto na bomba da gasolina e o abastecimento da gasolina proporciona desconto nas compras do supermercado, para além das 20 senhas de desconto imprimidas na máquina da entrada: uma verdadeira pescadinha de rabo na boca, num círculo sem princípio e sem fim. O estratega acabou por inventar as dependências de consumo e de fidelidade, muito eficazes.
            No meu caso, não entrar no círculo das compras e da gasolina, significa que perco cerca de 7 euros por semana, 28 euros por mês, 346 euros por ano e é esta engenharia de marketing hipócrita que me agarrou. Sinto-me vulnerável, mas com vontade de rasgar todas as senhas aos pedacinhos e atirá-los ao ar na entrada do supermercado e subir para o tapete das caixas e gritar bem alto: Marketing hipócrita! Fazer o quê? Complica-me com os nervos esta bipolaridade, esta correria entre a bomba da gasolina e o supermercado. Que cansaço!
            Já juntei senhas para peluches, tabuleiros pirex, copos, tupperware e outros produtos que não preciso. Quando haverá senhas para fruta, carne, arroz, massa?...
AQ
Publicado em NVR

11 novembro, 2018

CATAFALCO . Sé de Luanda





Dos catafalcos erigidos em Portugal e nas suas colónias, restaram alguns projectos, entre os quais um, merece atenção pelo remate de coroa real fechada sobre volutas, trata-se daquele, desenhado pelo sobrinho de Santos Pacheco para a Sé da cidade de São Paulo de Luanda em 1751. Este carpinteiro de nome ainda desconhecido, foi degredado para Angola durante o governo de D. Antônio Soares Portugal, Conde do Lavradio, que dirigiu as exéquias em honra de D. João V (pela sua morte).

No catafalco da Sé de Luanda uma pequena coroa real fechada sobre seis volutas rematam, juntamente com dois anjos sobre os ressaltos fronteiros do entablamento, o baldaquino, que têm como elementos de sustentação, oito colunas coríntias de fustes lisos com o terço inferior destacado com estrias helicoidais, sendo o seu limite cingido por pontas de folhas.

No centro do entablamento fica a segunda coroa real fechada de onde pendem cortinas delgadas, sustentada por anjos esvoaçantes, ficando a terceira coroa real sobre almofada por cima da Essa. O carácter desta solução são as volutas que evoluem em curvas e contracurvas, em três secções, além das oito colunas.




Fig.2


A configuração do catafalco de Luanda deve muito ao desenho de altar elaborado por G. M. Oppenord (Paris1672-1742) e publicado no seu livro “D’Autels et Tombeaux” (Fig. 3).

 Neste altar concebido para um ambiente doméstico palaciano, quatro colunas compósitas de fustes lisos sustentam um entablamento rematado por quatro volutas que sustentam uma pequena coroa real fechada que tem por baixo dois querubins. As volutas deste baldaquino são sinuosas ou ondeadas, podendo ter influenciado o formato das volutas do catafalco de Luanda, que entretanto, têm formato mais expressivo e movimentado. 


Fig. 3

  
Figura 1 - Catafalco das pompas fúnebres de D. João V, erguido na Sé da cidade De São Paulo de Luanda, projeto do sobrinho de Santos Pacheco. Arquivo Histórico Ultramarino - Lisboa
Figura 2 - Planta baixa do catafalco da Sé de Luanda - Arquivo Histórico Ultramarino - Lisboa
Figura 3 - Proposta para altar doméstico, gravura nº 5, do Livro de altares e túmulos de G. M. Oppenord. Faculdade de Belas Artes da UP – Portugal.

 Fonte: adaptação realizada a partir de:

A GÊNESE FORMAL E SIMBÓLICA DO RETÁBULO DE N. SR. DO BONFIM DA BAHIA E SEUS DERIVADOS, Luiz Alberto Ribeiro Freire, revista OHUM (revista do programa de pós graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia).

  
Catafalco ou Essa, estrado erguido numa igreja para nele se colocar o caixão de um defunto, enquanto se procede às cerimónias fúnebres.
 Voluta, ornamento enrolado em espiral.
 Entablamento, conjunto de elementos horizontais assentes em colunas ou em pilares.
Baldaquino, remate arquitectónico ou escultórico que resguarda um portal, um altar, ou escultura importante.
  
A. Quelhas

07 novembro, 2018

I'm your mirror

I'm your mirror
            Visitar a exposição de Joana Vasconcelos "I'm your mirror", no museu Guggenhein em Bilbau, requer fazer cerca de 590 km por estrada, apenas com uma portagem em território castelhano e várias no Norte de Portugal. E eu fiz.
            Joana de Vasconcelos gera urticária em alguns artistas plásticos e críticos de arte portugueses, virando uma artista “maldita”, combatida com Fenistil verbal. Dizem que as suas esculturas são feitas de sucata e que não têm valor artístico. Talvez seja a arte pimba.
            Não percebo esta antipatia, este cerrar de fileiras em relação a uma mulher que faz esculturas inesquecíveis, consideradas em todo o mundo, usando uma escala grandiosa. Torna-se impossível negar o impacto que gera nos observadores.
            Não quero acreditar que esta negação tenha a ver com o aspecto físico da artista. Ser gorda não é fácil. Quando uma gorda ganha destaque é mesmo por mérito. Prefiro não perceber do que acreditar neste bullying idiota.
            Já vi esculturas gigantescas de objetos utilitários realizadas em fibra de vidro e betão, em que os mesmos críticos teceram grandes elogios. Qual é a diferença? A diferença é que a obra de Joana tem significados e empatias muito mais interessantes, provocando a tal urticária inexplicável do contragosto ou do desgosto, acompanhada de sorrisinho IIC (irritante, irónico e condescendente). Será que irrita o terço de Fátima? O Siza Vieira também andou por lá. Parece ser proibido unir, o kitsch, o trabalho artesanal, os objectos utilitários e a criatividade numa postura irreverente e com algum conteúdo reflexivo.
            Ainda por cima uma mulher grandona, gorda e exuberante, que não encontra a forma certa e cinzenta de vestir!
            Pobre do Duchamp se tivesse nascido português, encarnando uma mulher gorda ao lado de um mictório. E Picasso com a cabeça do touro feito com o selim e o guiador de uma bicicleta? E a mulher de Miró?
            A primeira vez que vi uma obra de Joana foi no museu Berardo e outras se seguiram. Sorri com o candelabro, tão delicado e feminino, feito de tampões, tão contestado nesta sociedade falsamente puritana, ou então a escultura com cães que esteve numa exposição do riso em Lisboa.
            O que dizer do cadeirão Aspirina, o sofá Valium, os sapatos Dorothy, o solitário, a mascarilha espelho, o helicóptero pluma, as esculturas de Bordalo Pinheiro, o cacilheiro, o bule, o coração independente, o piano, o cão malmequer, os mictórios geminados, a pistola Call Center e as Valquírias? Eu aprecio.
            Felizmente a artista revela-se um pouco indiferente às críticas empedernidas e avança. Joana Vasconcelos, desde 1994, reúne uma equipa, que a ajuda a concretizar as peças imaginadas, formada por senhoras idosas, que fazem crochet, de costureiros, serralheiros, trolhas, engenheiros e divulga aspectos culturais portugueses – o azulejo, Bordalo Pinheiro, a filigrana e a arte popular, que de ouro modo estariam confinados ao nosso pequeno rectângulo. Acham pouco?
            O reconhecimento internacional chegou com a exposição realizada no Palácio de Versalhes (primeira portuguesa que ali expôs individualmente), com a Bienal de Veneza e agora com o Guggenheim de Bilbau (também a primeira portuguesa).
            Tenho o hábito de observar quem observa e sorrir perante as reacções de agrado e surpresa, completamente seduzida por uma obra de arte. No Guggen, vive-se uma escultura, por dentro de uma Valquíria gigante, utilizando diversos espaços que o museu oferece no seu átrio central. Todos os visitantes parecem jovens irrequietos usufruindo da cor, do tacto quando possível, das texturas dos materiais e da escala. Conversam, trocam comentários e reforçam verbalmente certos detalhes. O átrio enche-se e não há vontade para sair dali.
            Alguns consideram que ela é, ou era, a artista do regime. Resta-me apenas dizer que os governos mudam e a obra dela permanece, transportada de um lado para o outro, conquistando o mundo. Permanece também no meu arquivo memorizado, envolta em algum carinho que dedico a todas aquelas mulheres que contribuem para mostrar a arte no feminino.
            Não percam!

Publicado em NVR - 7/11/2018