15 janeiro, 2020

Requalificação da Avenida





Requalificação da Avenida
            Começou.
            As árvores já foram. A avenida apresenta um pouco a sua modesta nudez aos vila-realenses estupefactos e indignados.
            A opinião da população divide-se e regista-se nas redes sociais, uns, a favor outros contra. Utilizam-se palavras como traição, punhalada, destruição, atrocidade, virar do avesso, palhaçada, excentricidade, porcaria,…
            Houve apresentação e consulta pública do plano, se os vila-realenses se manifestaram nos locais adequados e se isso foi tido em consideração, deduz-se que a maioria optou pela mudança.
            Entre as opiniões, entre o supostamente certo e o supostamente errado, entre os ingénuos, os astutos e os maliciosos, esgrimem-se sensibilidades e/ou disfarçadamente, estratégias políticas, memórias de má memória, e argumentos por vezes, meio tontos, tanto de um lado como do outro. A maioria apesar de pouco perceber de morfologia urbana, de tipos de intervenção em malha urbana histórica, tem o direito de manifestar a sua sensibilidade perante o caso, pois esta é a sua cidade e assiste-lhe o direito cívico do protesto. É interessante verificar que as opiniões também se vão alterando mesmo por parte dos técnicos responsáveis pelas obras desta cidade. Registo com um sorriso, que tive um projeto chumbado no centro histórico, há mais de vinte anos, apenas porque introduzi uma caixilharia azul escura num estabelecimento comercial. Ainda bem que as opiniões se alteram.
            Mas se há polémica, esta deve preocupar o município, porque se verifica certamente uma das situações:
            1 – A informação não foi suficiente e transparente.
            2 – Não é a melhor solução.
            A mudança, tráz consigo, sempre algum desconforto e também todos sabemos que não há soluções perfeitas, nem é possível agradar a todos. A mim, pessoalmente, desagrada-me agradar a todos e desculpem-me por vezes agrada-me a ruptura, apesar das consequências que existirão sempre.
            Eu não sou de cá, mas percebo que este é um espaço que mexe com a identidade dos cidadãos e a solução apresentada de facto não respeita essa identidade. Considero também que a avenida já era uma avenida amputada num dos extremos, com as obras que foram realizadas, substituindo o jardim central localizado em frente à Câmara Municipal, por um terreiro com uns repuxos. Um projecto que tanto pode estar ali como poderia estar em Singapura, mas que permite a permanência e a realização de alguns eventos, o que parece animar e agradar aos vila-realenses. Incomodou-me essa mudança inicial, amputar 1/3 da avenida, porque esta, vale por um todo e não só por uma parte. Os 2/3 foram o que restou de uma avenida amputada, seccionada que ficaria aleijada para o resto da vida. O plano actual, não sei se irá mexer com a identidade dos cidadãos, mas já não me escandaliza, penso que é sequência do que se iniciou, mal ou bem. As duas partes são tão díspares e inconciliáveis, que tenho dúvidas se seria melhor manter esta situação de compromisso irreal.   
            Tenho sido ouvinte e tenho evitado comentários, porque nem percebo o desacordo de alguns, apenas porque, politicamente, ocorreu uma mudança – a velha guerra PSD/PS. Seria suposto que não haveria grande polémica, atendendo a que já só tínhamos 2/3 da avenida.
            Uns preocupam-se com as árvores, outros com a calçada, outros com a alteração das vias, outros com o jardim e outros com aquilo que não se via e vai passar a ver. A cada cabeça, sua sentença.
            O espaço caracteriza-se pela junção de vários elementos, árvores, jardim central, passeios laterais, zonas de estar, esplanadas, calçada, esquema viário, os edifícios, estátuas, fontes, zonas de atravessamento, etc. É esta amálgama de elementos urbanos que caracteriza um espaço, proporciona uma certa vivência e onde se registam memórias. Não se pode fazer uma contabilidade, comparando metros quadrados, número de árvores, lugares de estacionamento, zonas para peões, etc etc..
            Esta é uma intervenção de mudança e verdadeiramente estrutural, que afectará o centro histórico e o postal ilustrado da avenida do século XIX. Não vale a pena disfarçar e muito menos comparar com a Avenida dos Aliados no Porto, como um bom exemplo a seguir, que não o é. É uma intervenção de ruptura que irá marcar a cidade por uns bons anos.
            As intervenções urbanas normalmente regem-se por um bom plano de intenções. Os arquitectos, sociólogos, economistas e engenheiros, não andam aqui a criar planos diabólicos só para chatear. Não. Os planos de intenções tentam resolver problemas e responder às novas exigências dos utentes que vão mudando, consoante a evolução dos tempos e das gerações. Falta saber se as soluções serão as melhores. No esboço, na maquete e no projecto, por vezes tudo parece bem, esteticamente equilibrado, porém, ninguém pode antever se os cidadãos se irão identificar com o novo arranjo urbano. A maioria dos cidadãos não faz leituras de eixos, direcções, equilíbrio de composição, relação forma/função, integração/ruptura; faz uma leitura das entrelinhas dos afectos e da permanência das pessoas. Temos um caso na nossa cidade, o Largo de S. Pedro, que foi intervencionado para privilegiar o espaço pedonal e tudo parecia bem, só que deixou de registar vivências, porque ninguém está lá. Uma solução que funcionou ao contrário. Hoje quem permanece ali são os automóveis estacionados e não há vivências dignas de registo, comparando com o “reboliço” que era há 20 anos. Perdeu vigor, pujança, identidade e memória, aquilo que sensibiliza os cidadãos. Deixou de ser um sítio de permanência e passou a ser de passagem, “asséptico” e murcho, com pouca valia por quem lá passa.
            Projectar e viver, são coisas diferentes. Mudar será sempre uma tarefa perigosa e arriscada e, neste caso, irreversível, porém, é e continuará a ser praticada em todas as cidades por esse mundo fora, que agrada a uns e desagrada a outros. Se por um lado a conservação do património e da identidade de um povo é importante, a mudança também é importante. Admiro a resiliência do nosso presidente, que até destina tempo para prestar alguns esclarecimentos nas redes sociais, porém, tem o seu cargo em risco e a “cabeça a prémio”. Espero que não, mas é um cenário muito provável. A requalificação da avenida pode pôr em causa o trabalho de uma equipa, realizado ao longo destes últimos anos, porque lembro mais uma vez, há uma contra corrente política disfarçada, do não, apenas porque não. Reconheço que é um acto de coragem concretizar este plano, mesmo tendo meia cidade contra ele. Desconheço se seria urgente mudar ou se esta é a oportunidade para mudar. Conflito e indignação? já gerou imensos. Eu seria mais radical, chegado a fazer, acrescentaria ao nível inferior, a continuação do estacionamento, mesmo contrariando a tendência europeia do peão e da bicicleta. Numa cidade à nossa escala, sem automóvel ninguém vai a sítio nenhum — sei que é uma afirmação politicamente incorrecta, mas é verdade.
            Há que reforçar a informação, explicar em detalhe ao que levou à mudança, as grandes vantagens da mesma e o resultado da consulta pública. Expliquem claramente porque é melhor fazer de novo do que remendar. Não enviem pelo correio, as fotos dos presépios, enviem informação fácil de ler sobre isto que preocupa os munícipes. Por favor esqueçam a Avenida dos Aliados, nós queremos muito melhor e rápido, para que os benefícios, se os há, apareçam com brevidade aos olhos de todos. 
Publicado em NVR,  em 15/01/2020