22 maio, 2020

ATÉ PARA NASCER É PRECISO TER SORTE


 Até para nascer é preciso ter sorte

            Tenho dificuldade em conceber a estrutura mental de um assassino e nem sei como organizar o meu pensamento, neste caso da pequena Valentina, que abalou a sociedade portuguesa nos últimos dias.
            O instinto brutal que habita o interior de alguns é algo inimaginável e assustador. Quantos mais pormenores se conhecem, melhor se define o desenho da violência sobre esta menina e o crime hediondo de que foi alvo.
            Somaram-se atitudes, completamente inconcebíveis, a tortura, a desconfiança, o espancamento, a falta de assistência, a morte, a ocultação do cadáver, a destruição de provas, o disfarce perante a sociedade, a simulação da preocupação sobre o desaparecimento da filha, etc, etc. O que se passará na cabeça deste homem, que utiliza práticas violentas contra alguém que é incapaz de dar um retorno e que se encontra totalmente frágil e dependente dele.
            Há famílias que nunca deveriam existir! Porque há famílias perigosas.
            Até para nascer é preciso ter sorte. Não interessa se nascemos ou não numa família rica, … se calha em nascer-se numa família de criminosos, o individuo vive em risco permanente, num crescimento atormentado e sem futuro, uma luta diária pela sobrevivência.
            (…) torturou-a com água a ferver nos pés. Mas o que é isto?cinco minutos de espancamento, após a tortura, até estar mortalmente lesionada.
            Não tenho capacidade para analisar este cenário.
            Que fera é essa que vive no interior daquele homem, indomável que não reprime os seus instintos cruéis, é incapaz de se colocar no lugar do outro por forma a sensibilizar-se com o sofrimento que provoca e desenvolve um insensibilidade surpreendente furiosa e malvada.
            O que é que ele aprendeu na sua família, na escola e na sociedade? Como se cria e desenvolve uma besta destas? Conseguirão desenvolver empatias, remorso, arrependimento, culpa, medo? Nada regula as suas emoções?
            Um filho é para amar incondicionalmente.
            Ainda percebo as atenuantes da Sara (o caso do recém-nascido deitado ao lixo), mas isto não!
            Que mente tortuosa é esta, capaz de tanto horror. Nasce-se criminoso?
            Como se sobrevive numa família desequilibrada e às mãos de um criminoso e à passividade de uma madrasta? Qual é o instinto maternal desta criatura feminina, mãe em triplicado, que assistiu, ajudou e colaborou? Esta mãe manchou a condição de se ser mãe.
            Com quantas Valentinas já nos cruzamos? Quantas Valentinas teremos à nossa volta, a sofrer em silêncio, para proteger exactamente quem lhes faz mal?
Este meu “revoltando os dias” é cheio de interrogações, sem respostas.
            Sobraram três crianças, sorte a delas! Escaparam com vida desta família, que nunca deveria existir. Vítimas afectadas, cada uma à sua maneira, sobreviveram.
            Isto é um quadro sem princípios, sem valores e sem lógica, para os psicólogos estudarem e que eu recuso entender.
Publicado em NVR  20/05/2020

11 maio, 2020

FEMININUS - exposição


FEMININUS
a mulher invade com frequência o meu espaço criativo, pela delicadeza, pela fragilidade feita força, pela sensibilidade, pela maternidade, pelas múltiplas faces que assume e pelo que sou.
Anabela Quelhas














06 maio, 2020

É UM CASARIO


É UM CASARIO

            É um casario homogéneo na diversidade, parece compacto, voltado para as ruas e que vira as costas aos campos, aos lameiros e às hortas. Parecem esquecidos da mancha urbana, como se não tivessem valor, como se não pertencessem a esta narrativa que se pretende citadina, sem enquadramento… ficam de lado, ficam para trás quietos e silenciosos, deixando-se iludir como falsamente ignorados.
            A teia construída trepa orgânica e serenamente a morfologia do solo até se perder na serra, localizada na linha do horizonte, que a divide a poente com outros lugares. Os planos sobem, por ruas e quelhos até atingir o Santuário, oferecendo-nos panos de parede, ora graníticos, ora alvos pela cal, com muros misturados feitos de pequenas pedras e uma lagartixa inquieta a espreitar de vez em quando. A tonalidade fria do granito das alvenarias, matiza-se com os vermelhos de uma roseira ou de um craveiro pendente, com os azuis de uma glicínia, com os rosados das malvas crescidas em vasos que adornam as pequenas escadas, ou com as campanelas, que anunciam a Primavera. De vez em quando despontam urtigas, hortelã, mentrastos e mercuriais nos cantos abandonados.       
            Dos muros entre as pedras brotam conchilos e musgos de flor delicada. São estes pormenores secundários que bordam a geografia deste lugar silvestre e urbano em simultâneo.
            O maçadoiro, o cruzeiro, a fonte, as alminhas, o chafariz, os passadiços e os canastros, testemunhos de muitas memórias, estão aqui também, silenciosos e intemporais dando-nos a certeza que nos conhecem a nós, aos nossos antepassados e conhecerão quem virá no futuro. 
            Escuta-se o silêncio, cortado pontualmente pelo sino que já não bate as horas, o mugir das vacas ausentes e o zurrar de um burro, que já não existe. Aquele carro de bois ao longe a chiar só de imaginação. Restam as abelhas, indiferentes a tudo, realizando a sua árdua tarefa de polinização. O som do regato corre nas fontes e o cheiro a canela, polvilhada sobre a aletria, solta-se de um postigo qualquer.
            À noite, na ausência da luminosidade solar, Justes veste uma nova imagem, mais misteriosa, mais meditativa, mais imperscrutável, mais opaca, pautada pelos pontos da iluminação pública, cada vez menos presentes e mais esbatidos, devido à perspectiva, pelo brilho dos vidros das janelas e pela presença da Lua de várias fases, que organiza a lavoura e é protagonista de muitas histórias, contadas e recontadas ao borralho das lareiras.
             Nesta aldeia feita de penumbras, de translúcidos, de sombras coadas e recantos escuros, nas várias horas da noite, a Capela de Santa Maria Madalena assume força e beleza, assinalando um centro geográfico descentrado, que vai juntando os retalhos desta aldeia, feitos de terra e de afectos, aqui, e no universo da diáspora.
Anabela Quelhas
Fotografia: Américo José da Silva Correia
Publicado em NVR em 6/05/2020