06 maio, 2020

É UM CASARIO


É UM CASARIO

            É um casario homogéneo na diversidade, parece compacto, voltado para as ruas e que vira as costas aos campos, aos lameiros e às hortas. Parecem esquecidos da mancha urbana, como se não tivessem valor, como se não pertencessem a esta narrativa que se pretende citadina, sem enquadramento… ficam de lado, ficam para trás quietos e silenciosos, deixando-se iludir como falsamente ignorados.
            A teia construída trepa orgânica e serenamente a morfologia do solo até se perder na serra, localizada na linha do horizonte, que a divide a poente com outros lugares. Os planos sobem, por ruas e quelhos até atingir o Santuário, oferecendo-nos panos de parede, ora graníticos, ora alvos pela cal, com muros misturados feitos de pequenas pedras e uma lagartixa inquieta a espreitar de vez em quando. A tonalidade fria do granito das alvenarias, matiza-se com os vermelhos de uma roseira ou de um craveiro pendente, com os azuis de uma glicínia, com os rosados das malvas crescidas em vasos que adornam as pequenas escadas, ou com as campanelas, que anunciam a Primavera. De vez em quando despontam urtigas, hortelã, mentrastos e mercuriais nos cantos abandonados.       
            Dos muros entre as pedras brotam conchilos e musgos de flor delicada. São estes pormenores secundários que bordam a geografia deste lugar silvestre e urbano em simultâneo.
            O maçadoiro, o cruzeiro, a fonte, as alminhas, o chafariz, os passadiços e os canastros, testemunhos de muitas memórias, estão aqui também, silenciosos e intemporais dando-nos a certeza que nos conhecem a nós, aos nossos antepassados e conhecerão quem virá no futuro. 
            Escuta-se o silêncio, cortado pontualmente pelo sino que já não bate as horas, o mugir das vacas ausentes e o zurrar de um burro, que já não existe. Aquele carro de bois ao longe a chiar só de imaginação. Restam as abelhas, indiferentes a tudo, realizando a sua árdua tarefa de polinização. O som do regato corre nas fontes e o cheiro a canela, polvilhada sobre a aletria, solta-se de um postigo qualquer.
            À noite, na ausência da luminosidade solar, Justes veste uma nova imagem, mais misteriosa, mais meditativa, mais imperscrutável, mais opaca, pautada pelos pontos da iluminação pública, cada vez menos presentes e mais esbatidos, devido à perspectiva, pelo brilho dos vidros das janelas e pela presença da Lua de várias fases, que organiza a lavoura e é protagonista de muitas histórias, contadas e recontadas ao borralho das lareiras.
             Nesta aldeia feita de penumbras, de translúcidos, de sombras coadas e recantos escuros, nas várias horas da noite, a Capela de Santa Maria Madalena assume força e beleza, assinalando um centro geográfico descentrado, que vai juntando os retalhos desta aldeia, feitos de terra e de afectos, aqui, e no universo da diáspora.
Anabela Quelhas
Fotografia: Américo José da Silva Correia
Publicado em NVR em 6/05/2020

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