30 abril, 2021

28 abril, 2021

CHRISTOS SANDALAKIS

 


Christos Sandalakis

 

            Hoje vou falar-vos de uma publicidade que passa na televisão sobre uma operadora de telecomunicações.

            Fiquei absolutamente emocionada ao ver um invisual a descer uma montanha pedalando numa bicicleta. Tive curiosidade e fui investigar sobre aquele atleta. Descobri ser um atleta grego, para-olímpico, Christos Sandalakis. Nasceu com uma doença rara e perdeu 99% da visão e como é um lutador e um entusiasta, converteu-se num atleta de paraciclismo em pista.

            O seu último desafio foi descer uma montanha, sozinho, pedalando uma bicicleta, orientado pelo seu parceiro desportivo e piloto, Sotiris, utilizando a tecnologia 5G, em tempo real.

            Chamo a isto um exercício de segurança e de confiança. Nunca a expressão “confiança cega” fez tanto sentido. Christos Sandalakis, cego, confia completamente no seu companheiro Sotiris que vê… é que se algo falha, é tombo pela certa a alta velocidade, podendo ser mortal. Quem confiaria assim em alguém?

            O companheiro desportivo assume a função de orientador com a maior segurança do mundo, consciente da grande responsabilidade que isso implica; tem a vida do companheiro nas mãos, outra expressão que faz aqui todo o sentido.

            Com uma câmara de vídeo do telemóvel aplicada no seu capacete, com ligação áudio e vídeo através da tecnologia 5G ao seu parceiro, que consegue ver a estrada no centro de controlo instalado numa carrinha e emite instruções claras e rigorosas, como se pensasse alto e estivesse a pedalar.

            vai,vai, vai, trava, trava, trava, curva para a esquerda, vai, vai

            Christos sendo o receptor, converte as instruções na sua condução, em equilíbrio e em velocidade. Parece fácil, mas não é, a tecnologia torna possível o quase impossível, mesmo assim envolve um grande risco. A falha de um segundo pode correr mal para o atleta. Inicialmente pensei que se tratava de um evento virtual, mas estava enganada. O percurso tem pendente acentuada, onde a força de gravidade acelera a bicicleta, e possui curvas todas diferentes umas das outras, onde o ciclista tem que contar com a sua postura para contrariar a força centrífuga. Apesar de ser uma leiga no assunto, foi isto que li nas imagens que já correram o mundo.

            A deficiência visual é algo que me sensibiliza imenso e foi muito bom ver o rosto do jovem a cruzar a chegada, o sorriso de felicidade vitoriosa que testemunha muitos anos de treino e a confiança plena nos olhos, no raciocícnio, nos reflexos e nas palavras do seu companheiro. A principal dificuldade de um invisual é exactamente a locomoção em autonomia.

            Às vezes, experimento aqui em casa, caminhar às escuras ou de olhos fechados e consigo perceber como é difícil o equilíbrio, a orientação, a noção das distâncias entre aquilo que nos rodeia, o conhecimento do piso onde caminhamos, e o efeito do som que passa a ter outro timbre. Quem nunca o fez experimente durante trinta minutos. O tacto passa a ter outro valor e dimensão no meio da escuridão da nossa visão, permitindo detectar obstáculos e evitá-los. Gerir toda esta informação sem o auxílio da visão é um cocktail emocional e racional, que neste caso é bem-sucedido graças ao empenho e a muitas horas de treino desta dupla de atletas, que merece a nossa atenção e interesse, porque novos desafios se seguirão.  

            “A sensação era indescritível quando cheguei sozinho à linha de chegada! Percebi que o que passei não foi só a finalização, mas o início de um amanhã cheio de novas possibilidades ”, disse animado o atleta Christos Sandalakis, após a conclusão do percurso (Janeiro de 2021).

Publicado em NVR 28/04/2021

23 abril, 2021

PEGADA DIGITAL E ÉTICA

Pegada digital e ética

            Pegada digital é a impressão inscrita na web, que vamos deixando quando navegamos pelo ciber espaço. Parece que nos movimentamos com um papel químico nos nossos pés virtuais. Tudo fica registado, para o bem e para o mal, lá fica entre os hiper, mega terabites de utilizações, e sempre aparece aos mais competentes investigadores da web.

            Nunca me preocupei muito com isso, quem não deve não teme,  sempre utilizei a net como local de recolha e partilha de informação, orientadas pelo bom-senso, racionalidade, oportunidade e responsabilidade.

            O que se escreve lá, lá fica e os esquemas para preservar a nossa privacidade virtual, são uma utopia porque tudo lá fica. Todos nós temos uma pegada digital, maior ou menor, mas temos. Tanto faz ser um navegador activo, como passivo, tudo deixa pegada. Os seus dados são gravados, que visitas faz, quanto tempo durou cada visita, para se poder construir um quadro com as suas preferências que irão antecipar a sua navegação sob a forma de sugestões ou de publicidade.

            Se escrever alarvidades que o envergonhe, é melhor pensar melhor antes de escrever, porque irão ficar registadas para sempre. Se está no trabalho e anda a navegar nas redes sociais, qualquer um detecta o horário em que o faz, se insulta alguém covardemente disfarçado pelo manto invisível digital e do distanciamento, o seu computador deixa rasto em todo o sitio e pode ser investigado, mediante uma denúncia policial.

            Há jovens que escrevem nas redes sociais, de palavrão para cima e depois, admiram-se que nas entrevistas para o emprego, não sejam seleccionados. Ninguém quer contratar um animal mal-educado. De facto as empresas já investigam a pegada digital dos seus futuros funcionários, antecipando problemas ou estudando o perfil que mais lhes convêm.

            Há outros que receiam tudo e mais alguma coisa, rodeiam-se de todos os cuidados, evitando escrever seja o que for, colocar uma foto na net, nem pensar, e navegam como mirones e no fim apagam o histórico, como se andasse a polícia atrás deles. Pode acontecer isto ou aquilo, conheço uma fulana…, o individuo parece que…, roubo de identidades, raptos, roubos, nudes… trancam-se no seu canto, só com os olhos de mirones a funcionar, antevendo o pior. Há manigâncias na internet tal como existem na vida real, repletas de imaginação – os negócios maravilhosos da Cristina Ferreira X Berardo, os nudes retocados e alterados, as escravas sexuais que precisam de ajuda, o viúvo da marinha mercante que nos ama loucamente e nos virá visitar ou o outro que é podre de rico, que vive num país qualquer, cujo regime político o persegue e precisa da nossa conta bancária para depositar parte da sua fortuna. E existe o lado mais obscuro da internet, denominado por darknet, mercado negro constituído pelos negócios da pornografia, drogas, pedofilia e terrorismo. Tal como na vida real há que escolher com critério, qual é o seu caminho.

            A web veio para ficar, não adianta fugir. Convêm investir na ética digital, siga estes princípios:

1 – evite espalhar notícias falsas; 2 – respeite opiniões diferentes e o trabalho dos outros; 3 - faça um uso responsável das ferramentas que a net lhe proporciona; 4 – respeite quem está do outro lado; 5 – não acredite em negócios com lucros fabulosos; 6 -  filtre tudo no seu sentido crítico mais apurado; 7 – não apoie comentários agressivos. 

Publicado em NVR em 21/04/2021

18 abril, 2021

A desconstrução


 Quando desconstróis o mundo e encontras novos e maiores encantos, interesses e saberes. Por vezes é necessário romper com a realidade e as maçadoras rotinas, para reoganizar o nosso mundo interior e ser mais feliz. 
Verás que para além das 3 cores primárias tão redutoras, o mundo é rico em muitas mais cores e infinitas tonalidades. Descobres que para além do muro do teu quintal, existe mais mundo e que está à tua espera, pronto para te renovar e para te fazer renascer. Então percebes, a relatividade daquilo que te afecta. Quem não te atribuiu valor, afinal nem te interessa nada e que o teu caminho está traçado e bem estruturado. 
A empatia com cada hora de vida é absolutamente urgente, e as minha entropias apenas a mim pertencem. Sigo quem me consegue surpreender pela positiva, todos os dias.
O resto é mesmo o resto, a ganga e os resíduos. 

15 abril, 2021

14 abril, 2021

ESCOLA DA BANDIDAGEM

ESCOLA DA BANDIDAGEM 

 “Falta de coerência”, “especulação” e “fantasia” foi assim que tudo terminou numa sexta-feira, perante uma justiça quântica (1), yeah.
    Às vezes dá vontade de enveredar pela brilhante carreira de bandido. 
    Penso imensas vezes nisso, em vez de andar a ensinar aos meus alunos como ser um cidadão activo, honesto, interveniente e sempre com uma postura de respeito pelo outro, deveria ensinar como viver à custa dos outros, como desenvolver a retórica e como passar entre os imensos e estranhos fios condutores que existem no mundo da justiça, para gamar e não ser condenado. 
     Fazer-lhes ver que podemos sempre contar com um amigo rico que nos pode sustentar e bem, e que se estudarmos muito, podemos ainda melhorar o nosso conhecimento sobre bandidagem. 
    Ensinar-lhes a verdadeira História que interessa, queimando as pestanas a partir do Barrabás símbolo do mal, adoptado no cristianismo, Al Capone, D. Corleone, Bonnie and Clyde, Ma Barker, Carlos o Chacal, Alves dos Reis e todos os mais famosos que se seguem… não faltam exemplos de sucesso. 
     Ensinar-lhe a diferença entre furto, roubo, assalto, desvio de capitais, corrupção, para que eles percebam de uma vez por todas, que é demasiado arriscado furtar um chocolate no Lidl; quando se “retira”, deve ser à grande, após estudar bem os caminhos da justiça. 
    Os alunos devem perceber muito bem o que é o crime de colarinho branco, se possível fazer trabalhos de pesquisa, usando aquelas metodologias pedagógicas que reforçam a aprendizagem e o conhecimento, para a “coisa” entrar na cabeça e permanecer ao longo da vida – ou seja, o método cientifico ao serviço da vilanagem.  
    Os futuros vilões devem perceber que se podem especializar, a um nível superior… nem sempre pegar no revólver e sacar guito no comboio, roubar o telemóvel dos incautos ou pegar de esticão a bolsa da velhinha, são as melhores opções, isso é como roubar o pirolito do colega, no tempo em que ainda usava calções! Pegar numa pá e abrir um túnel até à Caixa Forte do Tio Patinhas, só mesmo os Irmãos Metralhas nas histórias de quadradinhos, porque a malta fica a suar, cheia de pó, chateia-se, respira mal, fica com falta de ar, lesiona a coluna vertebral e no final tem que se ir para a fisioterapia… Por isso há aquela palavra, “ESTUDASSES”, quando é evidente a ingenuidade transformada em má opção. É preciso estudar muito e pôr os neurónios a trabalhar – para escrever sobre isto, também tive que fazer a minha pesquisa rudimentar, porque nem sabia quem eram os maiores, os mais famosos, e quem foi preso mais vezes, já que não aprendi nada disso, na escola tradicional.
     Agora não se veste fato de macaco para abrir túneis, agora veste-se Armani, Valentino, Gucci, Dior, Versage, Prada… marcas que não se vendem na feira de Lordelo, e sim na loja mais cara do mundo, na Bijan que fica em Rodeo Drive, Beverly Hills e onde se poderá cruzar com algumas figuras mediáticas. 
     Sejam ambiciosos, meus alunos!
     Há todo um aprendizado bem estruturado e holístico a realizar na escola, urgentemente, capaz de dar luz às gerações do futuro. Desenganem-se é preciso estudar línguas, matemática, física, filosofia, TIC, desenho… para de facto entender, ingressar e estabelecer-se com sucesso no mundo da vilania. Quem não o fizer, fica pelos chocolates do Lidl, ou outros pequenos furtos que podem dar pena grave e pesada. Sem estudo nunca poderá ser um bom traficante, e nunca retirará a fisga do bolso das calças. 
     Não vale a pena arriscar acto pequeno e ridiculo de subtrair aos outros. 
     Aquela ilusão romântica de roubar aos ricos para dar aos pobres, está absolutamente ultrapassada! Roubar aos pobres, de forma camuflada, para viver à rica, isto sim, isto deve ser o foco das aprendizagens, do desenvolvimento de competèncias, na verdadeira Escola da Bandidagem do século XXI. Seguir modelos do Robin dos Bosques ou do Zé do Telhado isso é leiturinha infantil, joguinho para os que estão ainda a iniciar a sua alfabetização, ou seja, as criancinhas do pré-escolar. 
     É urgente substituir os cenários de aprendizagem bonzinhos por cenários da canalhice real, que existem na sociedade, e são muitos, para que os futuros bandidos não se queixem que lhes foi imposto na Escola um saber demasiado académico. É preciso pensar, criar estratégias de burla para depois, aprender a sacar, desviar, lavar, branquear, abusar da confiança, falsificar e dominar os media – estas são as literacias do gamanço sofisticado, que todos os meliantes devem ter e desenvolver. 
     Atenção aos prazos, para quem se desagrada pelos números. Fazer pisca e conseguir ultrapassar os prazos pela direita, é uma manobra fantástica. 
     Preparem-se, porque também é preciso dominar alguns truques de magia – como transformar crimes em erros judiciais, corruptos em mártires, fraude fiscal em contabilidade organizada, empréstimo em saldo positivo, e uma prova em não prova – mas isso a justiça portuguesa dá uma ajudinha.

 “Eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada” (Zeca Afonso) 
                    ou 
É sexta-feira | Suei a semana inteira | No bolso não trago um tostão | Alguém me arranje emprego | Bom Bom Bom Bom!”(Boss AC)

Publicado em NVR em 14/04/2021
(1) Ricardo Araújo Pereira.

09 abril, 2021

Como vais Jacinto?

Como vais Jacinto?

 

              Numa sala de jantar organizada segundo a tradição, onde tudo deveria estar no sítio certo, reinava o silêncio modorrento de uma tarde soalheira, matizada pelos tons quentes da decoração, mistura cromática queirosiana, feita de cortinas e tapetes carmim, com os raios de luz projectados através das janelas que davam para o jardim da entrada.

              De franja, com duas trancinhas e de soquetes brancos, eu e o meu pai, de mão na mão, aguardávamos o senhor doutor.

              Aguardávamos em silêncio, estávamos numa casa de saúde, onde o barulho não era permitido e todos caminhavam com pés de veludo. O silêncio era enriquecido pela localização dessa grande casa, mistura de casa de quinta e clínica, na periferia da cidade de Vila Real. O barulho urbano mais persistente, que eventualmente chegava até lá, seria resultante do motor de algum carro de aluguer, conhecido como carro de praça, que transportando alguém necessitado de cuidados médicos, na falta de um hospital decente e público, percorria o estreito caminho de acesso e finalmente estacionava no jardim, dando seguimento à sinfonia do silêncio reinante, que se estendia até ao rio Corgo.

              Ouvia-se o nosso respirar recortado de forma regular pelo pêndulo obediente do relógio de sala. O tic, tac, tic, tac, tic...,

                                          ia embalando a minha consciência, desconfigurando o tempo, deformando a noção dos minutos que passavam, mas oferecendo-me um grande aconchego hipnótico, que perdurou até hoje na minha memória.

              Antes de conhecer o Dr. Otílio, foi-me apresentado o seu auto-retrato, localizado numa das paredes dessa sala, entre aparadores e vitrines. Com três anos de idade, achei o seu retrato, quase à escala natural, uma pintura gigante. A figura do médico, de bata branca, acompanhada pelos inseparáveis bigodes e cabeleira, indomáveis, era maior do que todas as representações pictóricas que eu tinha conhecido durante a minha curta existência. Aproximei-me, pus a minha mão de petiza, admirei cada pormenor. Achei o doutor simpático, mas escondi a minha chupeta cor-de-rosa, como medida de precaução — diziam-me que os senhores de bigode não gostavam de chupetas, na esperança de eu ir largando esse vício infantil.

              Continuei a observar a tela, as pinceladas, as texturas,…  mas eu tinha que olhar para cima e não chegava com a mão ao seu rosto.

              O meu pai pegou-me ao colo. Dei-lhe a chupeta para guardar no bolso, pois achava que seria mais seguro ser o meu pai a guardar o objecto de tão preciosa dependência, já que ao colo estaria ao nível dos bigodes do doutor — não fosse acontecer alguma surpresa com esse pedaço de parede que tinha bigodes e que era tão semelhante à realidade.

              Tic, tac,... tic, tac,... tic,...

              — Não mexas no retrato! O senhor doutor foi quem pintou o seu próprio retrato — disse o meu pai. — Ele pinta muito bem, podes olhar, mas não deves mexer.

              — Mas ele é médico, trata os “dói-dóis”!? — surpreendi-me, não conseguindo conciliar, no meu raciocínio infantil, estetoscópios, pincéis e tintas. A bata branca deveria ter alguma utilidade: eu veria as minhas irmãs a usar bata no colégio, mas isso seria uns meses mais tarde.

              Usava a bata branca porquê? Como é que ele pintava e olhava para ele mesmo? Ignorava os truques dos adultos na reflexão das imagens através de um espelho. O meu pensamento tinha dificuldade em gerir toda esta informação com a preguiça e sonolência inconscientemente resultantes da combinação infalível do calor, ao compasso do tempo emitido pelo relógio de sala e do aconchego do colo confortável do meu pai.

              Talvez tenha adormecido, ou a memória engoliu o tempo e as imagens da restante espera, misturando-os com outras esperas na mesma sala, ocorridas noutros dias e com outros propósitos. Não sei...

              — O Otílio já vem aí! Então pequenita, queres um rebuçado? — perguntava-me uma simpática senhora de cabelo armado e bem penteado, que sorria para mim e que tinha ido avisá-lo da nossa presença.

              — Não obrigado, ela não quer — agradeceu o meu pai.

              — Quero, quero pois! — opus eu, manifestando uma total ausência de cerimónia perante a família que acabava de conhecer, deixando o meu pai desarmado, perante essa desobediência descarada.

              Passaram-me os rebuçados.

              — Agradece. Diz: obrigada prima Estela — ensinou-me o meu pai.

 

              Entretanto uma figura quase silenciosa assomou à ombreira da porta de mãos cruzadas atrás das costas. Os meus olhos curiosos fixaram-se imediatamente nos seus bigodes. Sob estes, emergia um sorriso afável, franco e quase do tamanho do mundo. Os seus cabelos eram revoltos, mas belos.

 

              — Como vais Jacinto?

 

              Abraçaram-se os dois, num abraço de reencontro de dois continentes, feito de algumas cumplicidades, que se repetiu muitas outras vezes, encerrando histórias antigas, vivências comuns, ideais de liberdade partilhados e outros assuntos, nessa época, vedados ao mundo das crianças.

              Dois homens com dois destinos, cujos caminhos se cruzaram diversas vezes. Ambos sérios, íntegros, inteligentes, bonitos e amantes da liberdade. Um licenciou-se em medicina e estudou no conservatório de música, o outro apenas frequentou a 4ª classe e tocava, de ouvido, uma gaita-de-beiços e um violão. Um teve infância e adolescência, o outro passou directamente da infância para a idade adulta, porque ficou cedo sem o pai — as diferenças do dinheiro, no tempo em que, quanto mais ignorante, melhor. Apenas a resiliência era qualidade que fazia vencer.

              Anos mais tarde descobri que se tratava de uma pintura de autoria de Heitor Cramez, e não um auto-retrato, mas as emoções não se alteraram.

In ”Ensaios de escrita: um projecto sempre adiado”, Anabela Quelhas (homenagem ao escritor, médico, músico, caricaturista e pintor Dr. Otílo Figueiredo) 19/09/2009

In "O fato que nunca vestimos" Anabela Quelhas 2017

08 abril, 2021

Um aparador que vive comigo


 Este aparador tem cerca de 100 anos. Viveu na casa dos meus pais e agora vive comigo.

Sempre foi presença constante no meu imaginário e já há muito que lhe dei entrada na minha casa para me fazer companhia, ser-me útil e para alimentar o imaginário do meu relembramento.

Chegou o momento de lhe fazer uma operação plástica, para que ele reassuma com algum orgulho a sua imagem.

A transparência dos seus vidros foram recriadas e inspiradas em Piet Mondrian. 

Sento-me sempre de frente para ele e agora deleito o meu olhar com um sorriso nos lábios... parece-me que ficou bem.

07 abril, 2021

ANITA E A PÁSCOA

 


A Anita e a Páscoa

              E então passaram bem a Páscoa?

              Desconfinaram os cabeleireiros e já foi muito bom. A raiz negra do meu cabelo loiro já era tão grande, que até parecia uma pintura californiana.

              Esta Páscoa, tal como a anterior, foi emocionante. Durante a Semana Santa em vez de visitar as igrejas, coloquei em busca no You Tube e fiz várias visitas às igrejas de Roma. Fartei-me de andar e sempre alapada no sofá. Também deve contar alguns pontos para entrar no Reino dos Céus…

              Transferi o repasto pascal da cozinha para a sala, onde costumava receber 14 pessoas e desta vez éramos apenas dois, cada um nas pontas da mesa enorme quase vazia, mas cheia de glamour e a falar um pouco mais alto, para podermos ouvir-nos e dialogar.

              Uma toalha adamascada amarela, pratos brancos, copos vitral roxo, talher dourado cumpriram a estética do Vaticano,  e agora um frasco de álcool junto ao prato, permitiu que cada um desinfectasse os talheres, o telemóvel ou as mãos.

              - Oh mãe desinfectaste a lata da coca-cola?

              - Oh mãe tás a tossir? Tu vê lá, tens temperatura, dói-te o corpo?

              - Oh mãe, viste o correio? Tinha uma encomenda? Veio da China? E tu abriste? Desinfectaste as mãos logo a seguir? Deixa-a de quarentena, sabe-se lá se transporta um viruzinho amarelo

              Em vez do habitual cabrito ou cordeiro, decidimos democraticamente, fazer umas entradas de covilhetes, seguidos de um bife à casa com batata frita e um pudim de sobremesa. Ou seja, uma refeição especial, igualzinha a todas as outras que se vão repetindo ao longo da semana.

              Eu não faço jejuns, mas fiz o sacrifício de degustar amêndoas de chocolate durante a semana toda, o que equivale por cada 10 amêndoas terei que andar na próxima semana, 10km na passadeira. Certamente isto vai valer um bónus celestial.

              - Oh mãe, o que vai ser o jantar?

              - O que quiseres, sugere algo especial. O quê? uma pizza, mas hoje é dia de Páscoa…

              Flores, no domingo de ramos, não recebi, os afilhados telefonaram-me e disseram, olha a florista está fechada e assim e assado, e eu fingi que acreditei, o que me permitiu fazer o mesmo no dia de Páscoa… pegar no telefone, meus afilhados queridos, as lojas estão fechadas e assim e assado... Serei sempre o reflexo dos outros.

              No início da tarde, fomos para a janela ver se alguém passava na rua. Fizemos apostas, eu apostei numa hora 5 pessoas, o meu filho 2 pessoas. Quem ganhar, lava a loiça do jantar. A nossa rua sofreu grandes melhoramentos, tiraram os automóveis e alargaram os passeios. Mas tal como todos os outros dias do mês e do ano, não passou ninguém naqueles passeios, portanto ficámos a olhar o vazio que existe até à casa do outro lado da rua e durante uma hora sem ninguém para contar.

              - Lavas tu a loiça.

              - Mas ninguém acertou…

              - 2 é mais próximo de zero do que o 5, portanto lavas tu - argumentei.

              - Mas o zero não existe, é um não número… sabes que 2  a dividir por zero é igual a infinito e 5 está mais próximo do infinito, portanto és tu mãe, que vais lavar a loiça.

              - Se 2x0=0 e 5x0=0, então 2=5, ou seja, eu lavo o meu prato e tu lavas o teu.

              - Tás a filosofar, isso não é um silogismo, é uma falácia, mãe! Tu ensinaste- me isso na filosofia.

              - Queres ir dar uma volta de carro? Só podemos circular no concelho… vamos até ao Alvão ver o mar de pedras. Para quê? para largarmos os jogos do telemóvel e esta conversa idiota. Vamos refrescar os olhinhos. Se demoramos?  Não, acho que não, é ir e vir.  Bora lá!

              Entrámos no carro, e o carro não pegou. A bateria finou-se. E agora? E agora teremos que esperar até amanhã, para ir comprar uma bateria nova.

              - Não queres comprar pela net? É mais barata, vem da China. Daqui a 20 dias já a tens cá.

              - Poupa-me e, entretanto ando de táxi… vamos ver um filme, daqueles pesados de Semana Santa, com muito sangue e muito drama para fazermos mais uns pontos celestiais.

              - Mãe, não há folar para comer ao lanche?

              - Então, na pastelaria escolheste folhados de salsicha!

              - Mas eu vejo um folar a sorrir para mim no interior deste armário…

              Uff que Páscoa, sentei-me na poltrona, e semicerrei os olhos.

              - Mãe, já dormes?

              - Não, diz.

              - Afinal o Judas, o que denunciou Jesus, é apóstolo ou não?

              - Não, foi demitido, e substituído por S. Paulo muitos anos depois.

              - Mas o Leonardo da Vinci pintou a última ceia com 12 figuras.

              - 11 apóstolos e Sta Maria Madalena ao lado de Jesus, supõe-se, para não estragar a estética da composição da pintura do Leonardo. 

              … coloquei os óculos escuros e sintonizei rapidamente a imaginação: Maldivas, pós-pandemia, por favor. Fingi adormecer, até arrisquei um pequeno ressono, antes que a conversa resvalasse para a Ressurreição de Cristo,  o Moisés a separar as águas do Mar Vermelho na fuga do Egipto ou até ao sacrifício de Isaac. Já tenho pontos até para troca!

Publicado em NVR em 7/04/2021 - Revoltando os dias