07 abril, 2021

ANITA E A PÁSCOA

 


A Anita e a Páscoa

              E então passaram bem a Páscoa?

              Desconfinaram os cabeleireiros e já foi muito bom. A raiz negra do meu cabelo loiro já era tão grande, que até parecia uma pintura californiana.

              Esta Páscoa, tal como a anterior, foi emocionante. Durante a Semana Santa em vez de visitar as igrejas, coloquei em busca no You Tube e fiz várias visitas às igrejas de Roma. Fartei-me de andar e sempre alapada no sofá. Também deve contar alguns pontos para entrar no Reino dos Céus…

              Transferi o repasto pascal da cozinha para a sala, onde costumava receber 14 pessoas e desta vez éramos apenas dois, cada um nas pontas da mesa enorme quase vazia, mas cheia de glamour e a falar um pouco mais alto, para podermos ouvir-nos e dialogar.

              Uma toalha adamascada amarela, pratos brancos, copos vitral roxo, talher dourado cumpriram a estética do Vaticano,  e agora um frasco de álcool junto ao prato, permitiu que cada um desinfectasse os talheres, o telemóvel ou as mãos.

              - Oh mãe desinfectaste a lata da coca-cola?

              - Oh mãe tás a tossir? Tu vê lá, tens temperatura, dói-te o corpo?

              - Oh mãe, viste o correio? Tinha uma encomenda? Veio da China? E tu abriste? Desinfectaste as mãos logo a seguir? Deixa-a de quarentena, sabe-se lá se transporta um viruzinho amarelo

              Em vez do habitual cabrito ou cordeiro, decidimos democraticamente, fazer umas entradas de covilhetes, seguidos de um bife à casa com batata frita e um pudim de sobremesa. Ou seja, uma refeição especial, igualzinha a todas as outras que se vão repetindo ao longo da semana.

              Eu não faço jejuns, mas fiz o sacrifício de degustar amêndoas de chocolate durante a semana toda, o que equivale por cada 10 amêndoas terei que andar na próxima semana, 10km na passadeira. Certamente isto vai valer um bónus celestial.

              - Oh mãe, o que vai ser o jantar?

              - O que quiseres, sugere algo especial. O quê? uma pizza, mas hoje é dia de Páscoa…

              Flores, no domingo de ramos, não recebi, os afilhados telefonaram-me e disseram, olha a florista está fechada e assim e assado, e eu fingi que acreditei, o que me permitiu fazer o mesmo no dia de Páscoa… pegar no telefone, meus afilhados queridos, as lojas estão fechadas e assim e assado... Serei sempre o reflexo dos outros.

              No início da tarde, fomos para a janela ver se alguém passava na rua. Fizemos apostas, eu apostei numa hora 5 pessoas, o meu filho 2 pessoas. Quem ganhar, lava a loiça do jantar. A nossa rua sofreu grandes melhoramentos, tiraram os automóveis e alargaram os passeios. Mas tal como todos os outros dias do mês e do ano, não passou ninguém naqueles passeios, portanto ficámos a olhar o vazio que existe até à casa do outro lado da rua e durante uma hora sem ninguém para contar.

              - Lavas tu a loiça.

              - Mas ninguém acertou…

              - 2 é mais próximo de zero do que o 5, portanto lavas tu - argumentei.

              - Mas o zero não existe, é um não número… sabes que 2  a dividir por zero é igual a infinito e 5 está mais próximo do infinito, portanto és tu mãe, que vais lavar a loiça.

              - Se 2x0=0 e 5x0=0, então 2=5, ou seja, eu lavo o meu prato e tu lavas o teu.

              - Tás a filosofar, isso não é um silogismo, é uma falácia, mãe! Tu ensinaste- me isso na filosofia.

              - Queres ir dar uma volta de carro? Só podemos circular no concelho… vamos até ao Alvão ver o mar de pedras. Para quê? para largarmos os jogos do telemóvel e esta conversa idiota. Vamos refrescar os olhinhos. Se demoramos?  Não, acho que não, é ir e vir.  Bora lá!

              Entrámos no carro, e o carro não pegou. A bateria finou-se. E agora? E agora teremos que esperar até amanhã, para ir comprar uma bateria nova.

              - Não queres comprar pela net? É mais barata, vem da China. Daqui a 20 dias já a tens cá.

              - Poupa-me e, entretanto ando de táxi… vamos ver um filme, daqueles pesados de Semana Santa, com muito sangue e muito drama para fazermos mais uns pontos celestiais.

              - Mãe, não há folar para comer ao lanche?

              - Então, na pastelaria escolheste folhados de salsicha!

              - Mas eu vejo um folar a sorrir para mim no interior deste armário…

              Uff que Páscoa, sentei-me na poltrona, e semicerrei os olhos.

              - Mãe, já dormes?

              - Não, diz.

              - Afinal o Judas, o que denunciou Jesus, é apóstolo ou não?

              - Não, foi demitido, e substituído por S. Paulo muitos anos depois.

              - Mas o Leonardo da Vinci pintou a última ceia com 12 figuras.

              - 11 apóstolos e Sta Maria Madalena ao lado de Jesus, supõe-se, para não estragar a estética da composição da pintura do Leonardo. 

              … coloquei os óculos escuros e sintonizei rapidamente a imaginação: Maldivas, pós-pandemia, por favor. Fingi adormecer, até arrisquei um pequeno ressono, antes que a conversa resvalasse para a Ressurreição de Cristo,  o Moisés a separar as águas do Mar Vermelho na fuga do Egipto ou até ao sacrifício de Isaac. Já tenho pontos até para troca!

Publicado em NVR em 7/04/2021 - Revoltando os dias

5 comentários:

Ana André disse...

Dá gosto ler-te! Este texto está excelente, a Páscoa da pandemia! Com humor e muita criatividade!

Ana André disse...

Dá gosto ler-te! Este texto está excelente, a Páscoa da pandemia! Com humor e muita criatividade!

Manel disse...

Agora falta a escrita da Pascoela.

Manel disse...

Agora falta a escrita da Pascoela.

M. F. Santana disse...

És adorável, minha amiga Anita. Adoro essa imaginação.