31 outubro, 2020

LISTEN


Género: Drama

Realizador: Ana Rocha

Actores: Lúcia Moniz, Sophia Myles, Ruben Garcia

Ano: 2020

Sinopse:

Nos subúrbios de Londres, Bela e Jota enfrentam sérias dificuldades quando os Serviços Sociais levantam suspeitas sobre a segurança dos seus três filhos. A surdez da filha de 7 anos desencadeia um processo no sistema que parece não ter fim. Tudo se complica com o passar do tempo. "Listen" retrata a desgastante luta pela união da família após um erro irreversível.

 

28 outubro, 2020

Três indivíduos mascarados

 

                Três indivíduos mascarados conversam, “conspiram”, cochicham? À porta da loja Cardoso da Saudade, só lhes vejo os olhos, parecem-se com todos os outros mascarados que se passeiam pela Bila num sábado de manhã a aproveitar as manhãs ensolaradas do Outono, comprando os covilhetes da Gomes, os S. Marcos da Nova Pompeia e a bola de carne de outra pastelaria qualquer, para enriquecer e mimar o lanche familiar. Se estivessem dentro de um bote, adivinharia que seriam personagens de Shakespeare, assim… em pé junto ao estabelecimento comercial… estariam à espera das companheiras? Poderiam ter saído do romance  “A queda de um anjo” de Camilo Castelo Branco, como Calisto, Libório e Brás Lobato. Poderiam ser o imaginário de Fernando Pessoa, Álvaro, Ricardo e Alberto. Três homens que poderiam ser os reis magos se já estivéssemos no Natal. Há trios inesquecíveis — Cócó, Ranheta e Facada — Tintim, Capitão e Milú — Capitão Gancho, Barrica e TicTac,… até a Santíssima Trindade, são três, Pai, Filho e Espírito Santo… o número mágico da humanidade. 

                No tempo da outra senhora, três indivíduos parados a conversar na rua, já seria classificado como um pequeno ajuntamento, a conspirar contra o Estado Fascista, merecedor de investigação cuidada por parte da polícia política. Ainda bem que isso passou.

                Chamam-me,

                passo sem cumprimentar, não os reconhecendo…

                se fosse o justiceiro Zorro!… a máscara não oculta os  olhos, mas sim as bocas e os narizes. Nem os bigodes lhes vejo e o Tornado não anda por aqui!

                As pessoas passam, naquele caminhar despreocupado de fim-de-semana, em cidade calma e tranquila, ainda com as lojas abertas, por volta do meio-dia. Penso no meu almoço, cabrito no formo, uma iguaria da cozinha transmontana, reservada num restaurante, que tenho o prazer de me oferecer, após duas horas de trabalho no meu atelier de pintura. Tento repor a imaginação, equilibrando a minha paleta cromática digestiva, converto o meu desassossego em algo mais suportável.

                As vozes dos sorrisos mascarados, invisíveis e deduzidos a partir do olhar, iniciam o rasgar da seda da amizade no encontro a meio da rua, onde raramente passam automóveis. Conheço-os há tantos anos!… é melhor nem contar.

                Poderia ser Carnaval, mas não é, ainda há guarda-sóis abertos nas esplanadas, despedindo-se do Verão e as folhas de Outono começam a cair envergonhadas, resultando de uma alopecia vegetal obrigatória e anual. Para lá da cidade, a onda do Marão, prepara-se para os dias frios e gélidos que se avizinham e as pessoas tentam fingir a animação possível de tempos sombrios e certamente dolorosos, que virão. Alguns ficarão doentes, outros ficarão gravemente doentes, perderemos alguém da nossa família ou um amigo… outros ficarão incrédulos por serem assintomáticos. A maioria voltará a casa obrigatoriamente, para cumprir o isolamento sanitário. O entusiamo das pessoas não é genuíno, é um entusiasmo em alerta, que os impede de apreciar a beleza das encostas do Douro, que nesta época, se vestem no seu esplendor multicromático, resultando da simbiose outonal oferecida pela natureza.

                Os mascarados são mascarados, não porque lhes apetece ou por uma bizarria qualquer, mas sim, para protecção daquilo que se abateu sobre o mundo, e o virou do avesso, o inimigo que não se vê e que não respeita nem primaveras, nem outonos, muito menos, invernos.

                De que falam? do vírus, certamente,  dos contágios, das vacinas que não chegam, das obras na Avenida, do Benfica e do Sporting. Estarão a imaginar o Marcelo a tomar a vacina, dias depois? a app de rastreio obrigatória, peregrinações a Fátima? Estarão a falar sobre o progressivo esvaziamento do centro histórico, dos pontos negros desta cidade, da feira das Antiguidades, das boxes do cinema quase vazias, da ponte metálica mais uma vez bloqueada, da fila de automóveis em vários pontos da cidade, da Tasca do Alemão, que continua encerrada? Estarão a falar das cidades que tentam viver uma vida normal, disfarçando toda esta ansiedade colectiva, receosa da pandemia. Falarão dos telefones do Centro de Saúde que nunca ninguém os atende? Os homens quando se juntam!…

                Ui, estarão a falar das teorias da conspiração?

                eu nada ouço, atendendo a que, de máscara, os meus sentidos atrofiam, intimidam-se, não falo, não oiço, não vejo. Pareço uma verdadeira zombie a vaguear pela rua, confiando apenas no meu GPS, que felizmente funciona, mesmo com três sentidos afectados. Circulo de óculos escuros, falta-me apenas a burka. Coloco a pergunta que se impõe, quem usa burka, terá de usar máscara? Na verdade não me interessa a resposta.

                O que estarão eles a fazer?

                Três homens parados no meio da rua, a conversar, às 12h de sábado, parecem não ter nada que fazer. Arrisco que apenas fazem horas, aguardando a sua vez, para entregar a cabeça ao barbeiro.

                — Leio tudo o que escreves, olha que este trio daria uma boa notícia para o jornal.— desafiou um, provocando-me.

                Não resisto a uma provocação.

Publicado em NVR 27/10/2020

20 outubro, 2020

Não tenho opinião

 

Prémio Nobel da Literatura - não tenho opinião

                Quando chega a Outubro, os leitores aferem as suas escolhas, com o conhecimento do galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Há muitos anos alguns começaram a ver Saramago com outros olhos, de repente todos conhecem Pamuck, abriram a boca de espanto com Bob Dylan, silenciaram-se com Olga TorkarczuK, nome difícil de escrever e ler…

            Este ano o prémio Nobel da Literatura foi para Louise Gluck, uma poetisa norte- americana de 77 anos. Louise já ganhou muitos prémios literários importantes nos Estados Unidos, incluindo a Medalha Nacional de Humanidades, o Prémio Pulitzer, o Prémio Nacional do Livro, o Prémio National Book Critics Circle Award e o Prémio Bollingen, entre outros. Mesmo assim, a própria não estava a contar com este reconhecimento por parte da Academia Sueca, segundo ela, porque os Estado Unidos não se encontram atualmente em boas graças a nível mundial.

            Os intelectuais cá do sítio, correram ansiosos e em pânico, para as livrarias para comprarem um livro da autora, já que nunca tinham ouvido falar e muito menos conheciam a sua obra. Não pretendendo assumir a sua ignorância, tentariam ler rapidamente alguma obra para que rapidamente pudessem assumir a sua serena e actualizada postura intelectual. A Fnack publicitou rapidamente 4 ou 5 obras em edição epub. A autora não tem nenhuma obra traduzida para português. E agora?

            Assumo a minha ignorância, tive que ir ao Mister Google para me informar acerca de Louise e do grande vazio de informação sobre esta senhora. A maioria das publicações dos cibernautas são copiadas e repetidas. Ninguém avança com nada para além de uma biografia minimalista.

            Percebi que os seus temas de escrita são, a infância, a família, a solidão, a morte... que se inspira com frequência na mitologia grega e que é considerada “uma das mais talentosas poetas da contemporaneidade”.

            Na investigação que faço, ora lhe chamam poetisa, ora lhe chamam poeta, abrindo novamente o questionamento sociológico sobre feminino da palavra poeta, mas isso é outra história.

            Encontrei vários poemas traduzidos para português do Brasil, que decido não partilhar devido à fraca qualidade da tradução. Encontrei um, traduzido por Rui Pires Cabral, sobre o qual não opino. Não tenho opinião atendendo ao respeito que tenho pela poesia, pelo tradutor e agora, pela poetisa Nobel.

            Confesso que quando soube do prémio, mexi-me na cadeira e reconheci mais uma vez a minha ignorância, mas sem dramas. Não tenho que conhecer tudo, nem ter opinião acerca de tudo. Calmamente fui constatando a ignorância dos outros e a minha falta de entusiasmo para conhecer a sua obra, já que não aprecio poesia traduzida. 

            A poesia é uma das artes que exprime o que nos habita na alma, utilizando as palavras como meio de expressão estética, para mim só possível na minha língua, o português. Tenho de ler com o coração. É uma visão muito limitada acerca da poesia…. Será certamente, mas é assim que me entendo, entendendo (a).

Publicado em NVR 20/10/2020

13 outubro, 2020

CIRCUNSTRIT@

 Exposição virtual















07 outubro, 2020

SUSPIREM DE ALÍVIO

Suspirem de alívio

 

       As aulas começavam a 7 de outubro.

       As crianças iam apreensivas para a escola, sozinhas e inseguras, os pais nunca as acompanhavam, tinham mais que fazer, nos campos com as tarefas da lavoura. Contavam-se histórias da experiência dos irmãos mais velhos e de alguns pais que tiveram a sorte de ir à escola aprender a ler e a escrever, histórias semeadas com alguma violência e que eram verdade.

       Alguns alunos tentavam vestir uma roupa melhor e lavada, mesmo assim, remendada, ou herdada dos irmãos mais velhos, podendo faltar ou sobrar tecido no tamanho das pernas, mas alguns apresentavam-se descalços, apesar de as temperaturas já serem baixas. Estavam descalças, não por desleixo ou desorganização das famílias, apenas porque não tinham socos, nem chancos, muito menos sapatos. As mães não tinham conseguido arranjar calçado doado pelas famílias menos pobres, para calçar aos seus filhos.

       As mães tentaram domesticar os cabelos com pente e água do cântaro apenas no primeiro dia, afogando alguns piolhos desprevenidos.

       No primeiro dia, tudo parecia sereno. Os rapazes ficavam na sala dos rapazes e as raparigas na sala das raparigas, como se fosse uma espécie de propriedade horizontal da educação, distribuída por um edifício de arquitectura pensada por Raul Lino, que se tornou modelo nacional. Ninguém sabia explicar o porquê da separação das crianças, mas todos aceitavam como sendo correcto. Aliás, ninguém questionava nada. Queixavam-se da palmatória, mas ninguém questionava.

       A sala era austera, com as carteiras duplas, com bancos ligados, enfileiradas, com buracos para colocar os tinteiros. Um estrado, com dois quadros de lousa, os mapas pendurados na parede oposta onde repousava o crucifixo, ladeado dos retratos do General Carmona e do Professor Dr. Oliveira Salazar, conjuntamente com uma estante fechada e uma secretária, compunham a organização da sala de aula.

Existia uma lareira, que nunca foi utilizada, cada aluno na sua vez, transportava uma braseira com brasas vivas, para aquecer apenas a professora. Existiam duas instalações sanitárias que se encontravam encerradas, porque não existia água canalizada. As crianças iam fazer as necessidades ao monte, terreno anexo à escola.

       Ninguém abraçava ou beijava a professora, e poucos faziam contacto visual directo, nesse primeiro dia todos a cumprimentavam com aperto de mão, cantavam o Hino Nacional de mão estendida à frente, imitando a saudação romana. Os mais novos seguiam os mais velhos que já sabiam o Hino de cor, tentando não errar, abriam e fechavam a boca, sem som, num playback rudimentar e ingénuo, mas oportuno. A professora, apresentava, os senhores dos retratos, que os alunos desconheciam. Lembro que nos anos 60, poucos tinham televisão. Mostrava a bandeira nacional dobrada e arrumada no armário fechado, onde era proibido mexer, porque era um símbolo nacional. Esta fazia companhia a um pequeno grupo de livros que constituíam uma pequena biblioteca, onde também não era permitido ver ou mexer, muito menos ler.

       Cada aluno transportava numa sacola feita de sarja grosseira, os livros, os cadernos e a lousa. Os livros passavam de geração em geração e os dois cadernos comprados na mercearia, com o Camões na capa, onde se lia: Esta é a ditosa Pátria, Minha amada. Um caderno para as contas e outro para treinar a letra na linha estreita. Os cadernos deveriam durar até final do ano. A lousa, era a tecnologia do momento, onde se riscava com um ponteiro, e se apagava com cuspe e a manga da camisola. A motricidade fina era domesticada com a palmatória, um recurso pedagógico de grande sucesso, que permitia a evolução do Bê, A, Bá até aos problemas complexos de capacidades de enchimento de tanques de água, complementado com puxões de orelhas e bofetadas.

       Não havia problemas de indisciplina, só havia problemas de aprendizagem. Naquela época, não havia “deficits” cognitivos, aspergeres, autistas, nem hiperactivos, havia apenas os burros e os inteligentes, com o medo a fazer o equilíbrio diário entre ambos. Não havia associação de pais, nem pais interventivos. Até pareceria mal imaginar tais coisas.

       Cantava-se a tabuada, linhas de caminhos-de-ferro, estações e apeadeiros, rios e afluentes, os reis das quatro dinastias, a conjugação dos verbos, os pronomes, e as interjeições, numa lengalenga sem sentido. 

       As aulas começavam a 7 de outubro e seguiam-se 8 meses, destas torturas legalmente aceitáveis e os alunos reprovavam quantas vezes as que fossem necessárias.

       Suspirem de alívio.   

Publicado em NVR, 7/10/2020