07 outubro, 2020

SUSPIREM DE ALÍVIO

Suspirem de alívio

 

       As aulas começavam a 7 de outubro.

       As crianças iam apreensivas para a escola, sozinhas e inseguras, os pais nunca as acompanhavam, tinham mais que fazer, nos campos com as tarefas da lavoura. Contavam-se histórias da experiência dos irmãos mais velhos e de alguns pais que tiveram a sorte de ir à escola aprender a ler e a escrever, histórias semeadas com alguma violência e que eram verdade.

       Alguns alunos tentavam vestir uma roupa melhor e lavada, mesmo assim, remendada, ou herdada dos irmãos mais velhos, podendo faltar ou sobrar tecido no tamanho das pernas, mas alguns apresentavam-se descalços, apesar de as temperaturas já serem baixas. Estavam descalças, não por desleixo ou desorganização das famílias, apenas porque não tinham socos, nem chancos, muito menos sapatos. As mães não tinham conseguido arranjar calçado doado pelas famílias menos pobres, para calçar aos seus filhos.

       As mães tentaram domesticar os cabelos com pente e água do cântaro apenas no primeiro dia, afogando alguns piolhos desprevenidos.

       No primeiro dia, tudo parecia sereno. Os rapazes ficavam na sala dos rapazes e as raparigas na sala das raparigas, como se fosse uma espécie de propriedade horizontal da educação, distribuída por um edifício de arquitectura pensada por Raul Lino, que se tornou modelo nacional. Ninguém sabia explicar o porquê da separação das crianças, mas todos aceitavam como sendo correcto. Aliás, ninguém questionava nada. Queixavam-se da palmatória, mas ninguém questionava.

       A sala era austera, com as carteiras duplas, com bancos ligados, enfileiradas, com buracos para colocar os tinteiros. Um estrado, com dois quadros de lousa, os mapas pendurados na parede oposta onde repousava o crucifixo, ladeado dos retratos do General Carmona e do Professor Dr. Oliveira Salazar, conjuntamente com uma estante fechada e uma secretária, compunham a organização da sala de aula.

Existia uma lareira, que nunca foi utilizada, cada aluno na sua vez, transportava uma braseira com brasas vivas, para aquecer apenas a professora. Existiam duas instalações sanitárias que se encontravam encerradas, porque não existia água canalizada. As crianças iam fazer as necessidades ao monte, terreno anexo à escola.

       Ninguém abraçava ou beijava a professora, e poucos faziam contacto visual directo, nesse primeiro dia todos a cumprimentavam com aperto de mão, cantavam o Hino Nacional de mão estendida à frente, imitando a saudação romana. Os mais novos seguiam os mais velhos que já sabiam o Hino de cor, tentando não errar, abriam e fechavam a boca, sem som, num playback rudimentar e ingénuo, mas oportuno. A professora, apresentava, os senhores dos retratos, que os alunos desconheciam. Lembro que nos anos 60, poucos tinham televisão. Mostrava a bandeira nacional dobrada e arrumada no armário fechado, onde era proibido mexer, porque era um símbolo nacional. Esta fazia companhia a um pequeno grupo de livros que constituíam uma pequena biblioteca, onde também não era permitido ver ou mexer, muito menos ler.

       Cada aluno transportava numa sacola feita de sarja grosseira, os livros, os cadernos e a lousa. Os livros passavam de geração em geração e os dois cadernos comprados na mercearia, com o Camões na capa, onde se lia: Esta é a ditosa Pátria, Minha amada. Um caderno para as contas e outro para treinar a letra na linha estreita. Os cadernos deveriam durar até final do ano. A lousa, era a tecnologia do momento, onde se riscava com um ponteiro, e se apagava com cuspe e a manga da camisola. A motricidade fina era domesticada com a palmatória, um recurso pedagógico de grande sucesso, que permitia a evolução do Bê, A, Bá até aos problemas complexos de capacidades de enchimento de tanques de água, complementado com puxões de orelhas e bofetadas.

       Não havia problemas de indisciplina, só havia problemas de aprendizagem. Naquela época, não havia “deficits” cognitivos, aspergeres, autistas, nem hiperactivos, havia apenas os burros e os inteligentes, com o medo a fazer o equilíbrio diário entre ambos. Não havia associação de pais, nem pais interventivos. Até pareceria mal imaginar tais coisas.

       Cantava-se a tabuada, linhas de caminhos-de-ferro, estações e apeadeiros, rios e afluentes, os reis das quatro dinastias, a conjugação dos verbos, os pronomes, e as interjeições, numa lengalenga sem sentido. 

       As aulas começavam a 7 de outubro e seguiam-se 8 meses, destas torturas legalmente aceitáveis e os alunos reprovavam quantas vezes as que fossem necessárias.

       Suspirem de alívio.   

Publicado em NVR, 7/10/2020


 

1 comentário:

J.A. disse...

Ana, era mesmo assim. Eu tinha medo da minha professora.
J. A.