28 outubro, 2020

Três indivíduos mascarados

 

                Três indivíduos mascarados conversam, “conspiram”, cochicham? À porta da loja Cardoso da Saudade, só lhes vejo os olhos, parecem-se com todos os outros mascarados que se passeiam pela Bila num sábado de manhã a aproveitar as manhãs ensolaradas do Outono, comprando os covilhetes da Gomes, os S. Marcos da Nova Pompeia e a bola de carne de outra pastelaria qualquer, para enriquecer e mimar o lanche familiar. Se estivessem dentro de um bote, adivinharia que seriam personagens de Shakespeare, assim… em pé junto ao estabelecimento comercial… estariam à espera das companheiras? Poderiam ter saído do romance  “A queda de um anjo” de Camilo Castelo Branco, como Calisto, Libório e Brás Lobato. Poderiam ser o imaginário de Fernando Pessoa, Álvaro, Ricardo e Alberto. Três homens que poderiam ser os reis magos se já estivéssemos no Natal. Há trios inesquecíveis — Cócó, Ranheta e Facada — Tintim, Capitão e Milú — Capitão Gancho, Barrica e TicTac,… até a Santíssima Trindade, são três, Pai, Filho e Espírito Santo… o número mágico da humanidade. 

                No tempo da outra senhora, três indivíduos parados a conversar na rua, já seria classificado como um pequeno ajuntamento, a conspirar contra o Estado Fascista, merecedor de investigação cuidada por parte da polícia política. Ainda bem que isso passou.

                Chamam-me,

                passo sem cumprimentar, não os reconhecendo…

                se fosse o justiceiro Zorro!… a máscara não oculta os  olhos, mas sim as bocas e os narizes. Nem os bigodes lhes vejo e o Tornado não anda por aqui!

                As pessoas passam, naquele caminhar despreocupado de fim-de-semana, em cidade calma e tranquila, ainda com as lojas abertas, por volta do meio-dia. Penso no meu almoço, cabrito no formo, uma iguaria da cozinha transmontana, reservada num restaurante, que tenho o prazer de me oferecer, após duas horas de trabalho no meu atelier de pintura. Tento repor a imaginação, equilibrando a minha paleta cromática digestiva, converto o meu desassossego em algo mais suportável.

                As vozes dos sorrisos mascarados, invisíveis e deduzidos a partir do olhar, iniciam o rasgar da seda da amizade no encontro a meio da rua, onde raramente passam automóveis. Conheço-os há tantos anos!… é melhor nem contar.

                Poderia ser Carnaval, mas não é, ainda há guarda-sóis abertos nas esplanadas, despedindo-se do Verão e as folhas de Outono começam a cair envergonhadas, resultando de uma alopecia vegetal obrigatória e anual. Para lá da cidade, a onda do Marão, prepara-se para os dias frios e gélidos que se avizinham e as pessoas tentam fingir a animação possível de tempos sombrios e certamente dolorosos, que virão. Alguns ficarão doentes, outros ficarão gravemente doentes, perderemos alguém da nossa família ou um amigo… outros ficarão incrédulos por serem assintomáticos. A maioria voltará a casa obrigatoriamente, para cumprir o isolamento sanitário. O entusiamo das pessoas não é genuíno, é um entusiasmo em alerta, que os impede de apreciar a beleza das encostas do Douro, que nesta época, se vestem no seu esplendor multicromático, resultando da simbiose outonal oferecida pela natureza.

                Os mascarados são mascarados, não porque lhes apetece ou por uma bizarria qualquer, mas sim, para protecção daquilo que se abateu sobre o mundo, e o virou do avesso, o inimigo que não se vê e que não respeita nem primaveras, nem outonos, muito menos, invernos.

                De que falam? do vírus, certamente,  dos contágios, das vacinas que não chegam, das obras na Avenida, do Benfica e do Sporting. Estarão a imaginar o Marcelo a tomar a vacina, dias depois? a app de rastreio obrigatória, peregrinações a Fátima? Estarão a falar sobre o progressivo esvaziamento do centro histórico, dos pontos negros desta cidade, da feira das Antiguidades, das boxes do cinema quase vazias, da ponte metálica mais uma vez bloqueada, da fila de automóveis em vários pontos da cidade, da Tasca do Alemão, que continua encerrada? Estarão a falar das cidades que tentam viver uma vida normal, disfarçando toda esta ansiedade colectiva, receosa da pandemia. Falarão dos telefones do Centro de Saúde que nunca ninguém os atende? Os homens quando se juntam!…

                Ui, estarão a falar das teorias da conspiração?

                eu nada ouço, atendendo a que, de máscara, os meus sentidos atrofiam, intimidam-se, não falo, não oiço, não vejo. Pareço uma verdadeira zombie a vaguear pela rua, confiando apenas no meu GPS, que felizmente funciona, mesmo com três sentidos afectados. Circulo de óculos escuros, falta-me apenas a burka. Coloco a pergunta que se impõe, quem usa burka, terá de usar máscara? Na verdade não me interessa a resposta.

                O que estarão eles a fazer?

                Três homens parados no meio da rua, a conversar, às 12h de sábado, parecem não ter nada que fazer. Arrisco que apenas fazem horas, aguardando a sua vez, para entregar a cabeça ao barbeiro.

                — Leio tudo o que escreves, olha que este trio daria uma boa notícia para o jornal.— desafiou um, provocando-me.

                Não resisto a uma provocação.

Publicado em NVR 27/10/2020

6 comentários:

João Carlos Carranca disse...

e re-gostei

António Rodrigues disse...

Magnífica prosa...

António Rodrigues disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rui Pedro disse...


Observadora atenta.
Rui Pedro

jorge T. disse...

Descreves muito bem a vida.

Carlos Té disse...

é este o teu estilo. Continua.
Um xi.