JOÃO CUTILEIRO
Morreu
João Cutileiro, escultor alentejano que trabalhou muitos anos em Lagos, onde se
localiza a sua mais icónica obra, o D. Sebastião.
A
primeira vez que visitei Lagos, em 1977, olhei para a estátua de D. Sebastião, perguntei
às pessoas que estavam naquela praça e escutei as opiniões. Claro que eu já
sabia quem era, até porque a estátua estava identificada, mas esta é sempre a
velha forma de meter conversa e saber opinião.
-
É uma coisa que fizeram pr’aí.
-
Ó menina, é o D. Sebastião que um dia vai parecer numa manhã de nevoeiro.
-
Parece um astronauta.
-
Algum valor ela deve ter, porque muita gente passa aqui para a ver, mas
poderiam pô-lo em cima de um cavalo ou com uma coroa na cabeça. Assim há muita
gente que pensa que é um gaiato.
Naquela
conversa de rua, percebi a polèmica da obra, por sair do estereotipo do Estado
Novo, do rei montado a cavalo das estátuas equestres A avaliação não era consensual,
nem todos concordariam sobre a sua beleza e oportunidade, porém, ninguém era indiferente.
O
rosto cândido de Sebastião enterneceu-me. A forma como é tratado o mármore no seu acabamento,
distinguindo o rosto de forma suave e leve, traduz o seu aspecto juvenil, até
infantil, sensibiliza-me. Fui ler sobre D. Sebastião. O que havia na história deste
rei que justificasse esta opção escultórica? Todos estariam à espera de uma
estátua clássica, com um rei musculoso de espada em riste, um herói, tirado da
aprendizagem estética, que Cutileiro realizou com o seu mestre, Leopoldo de
Almeida.
O
que sabemos da História: com 14 anos, em plena adolescência, D. Sebastião ascende
ao poder e passados 10 anos, parte para o Norte de África, tentando concretizar
a sua utopia juvenil, alimentada pela nobreza portuguesa, tendo desaparecido na
batalha de Alcácer Quibir. Esta derrota é a expressão da ilusão da imaturidade
e da teimosia inconsequente deste jovem rei. Com a sua imprudência, perde uma
batalha e deixa o nosso país sem sucessor, abrindo o caminho para a entrega da
coroa portuguesa, aos Filipes de Espanha.
Considere-se
que este rei era fisicamente frágil e com saúde débil, de traços belos e
femininos, que João tão bem retratou. A sua ligação à Igreja, potencia a obsessão
pela defesa do Cristianismo, motivando-o para ir combater os Mouros, reforçado
por uma estratégia mercantil sobre o comércio do ouro, gado, açúcar e trigo, nessa
região, sem atender a alguns conselheiros experientes e mais lúcidos, que tentaram
evitar a tragédia nacional previsível. Para além do seu desaparecimento, morreram
naquela batalha, cerca de 7.000 jovens da nobreza portuguesa, depois de um
percurso complicado e extenuante, fruto de uma expedição mal organizada,
inexperiente e geograficamente difícil. O exército esgotou-se, seguindo por
terra, entre Arzila e Alcácer Quibir, com fome, com sede, com calor e padecendo
pela distância da sua terra de origem.
A
opção de Cutileiro pela estatuária do anti-herói, no enquadramento político do Portugal colonial, fruto do expansionismo
português, foi uma opção rebelde e ousada, tentado repor a verdade da História.
Todos se questionaram, ninguém ficou
indiferente e muitos procuraram saber as razões daquela estátua diferente,
cumprindo o propósito de João Cutileiro.
Falta
mencionar todas as suas outras obras que marcaram as artes em Portugal. João
produziu dezenas e dezenas de peças. Vou referir apenas as estátuas femininas,
delicadas e suaves, algumas delas contando com espelhos de água, que criaram outras
narrativas estéticas, através da desfragmentação das peças. São todas belíssimas.
Vila
Real tem uma, desde 1981, que “flutua” no lago da Casa de Mateus, que é um
verdadeiro poema num cenário barroco – uma menina mulher, adormecida e nua, esculpida
em escala delicada, tornando-se o contraponto, do reflexo da casa palaciana, sobre
a água do lago. Uma imagem ingénua/sensual
e muito subtil, inesquecível, fruto da concepção onírica do escultor. A figura
feminina e sedutora é esculpida em mármore rosa, polido, amaciado e leitoso, com
remate executado em mármore cinza/negro, representando o cabelo da menina - peça
rugosa, com vincos toscos, imprimindo movimento aos cabelos.
Alguns
chamam-lhe Danaide, figura da mitologia grega. João descomplica a narrativa que
se faz a propósito desta menina mulher, em repouso sobre uma linha de águas
calmas e refere que se inspirou “na Inês, e em todas as Inêses do mundo”. Há
quem lhe chame ninfa, devido ao enquadramento, porém, parece que esta obra não foi
pensada originalmente para este local. A
inspiração, na verdade, foi a mulher, o feminino do seu corpo delicado, a
repousar, dormindo sobre um colchão de água.
A
casa e a menina tornaram-se inseparáveis, constituindo motivo para muitas
histórias criadas na imaginação de quem as visita. O contraste e a simbiose entre
a simplicidade da escultura e a exuberância arquitectónica da Casa de Mateus, converteram-se
num diálogo permanente, sedutor e eterno.
1 comentário:
Olá Ana, nao conheço nenhuma das duas, quando for a Portugal vou tentar. Abraço
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