23 dezembro, 2020

ANITA E O NATAL

                Eu poderia escrever aquele conto de Natal a puxar ao sentimento e à lágrima, reforçado pela tragédia do Corona, ou mencionando os pobrezinhos e o espírito da paz, do amor e do azevinho que se revela nesta época do ano, o presépio, a manjedoura, os reis magos… seria bonito, lindo, cordato, assertivo e sobretudo sensato... porém, eu não sou sensata, nem quero ficar mais triste do que já estou desde Março.

         Todas as situações, mesmo esta, de não podermos estar com a família e amigos, podem ser analisadas pela perspectiva positiva, e é nisso que me irei centrar.   

         Nesta consoada solitária, em vez das couves e do bacalhau, irei saborear crepes sagrados e um bacalhau espiritual. Rematarei com uma nuvem do céu, encharcada conventual e orelhas de abade, sobremesas bem articuladas com esta data de referência cristã. Claro que não serei eu a cozinhar, visto que a minha roulote tem uma cozinha minúscula.

         Não terei que escolher toilette. Poderei vestir-me como quiser, e este ano poderei concretizar desejos antigos e inconfessáveis. Sentar-me-ei à mesa vestida de polícia, de enfermeira, de hospedeira de bordo, de gueixa ou de mexicana. Imaginem-me. São fetiches que não devo justificar. Tenho muito por onde escolher, sem me preocupar se vai ou não agradar.

         Não terei que observar a dentadura móvel da tia Elsie, nem tenho que estar sempre a acertar o aparelho auditivo do tio Marcel… sim, porque a dentadura da tia Elsie tem vida própria, sempre temo que ela escape, sobrevoe a mesa de Natal, que eu decoro com tanto amor e carinho, e aterre no prato das filhoses. Não terei de ouvir as gargalhadas despropositadas da sogra, nem as suas receitas de culinária especiais, copiadas da revista Tele Culinária, que comprou há mais de 40 anos, nem tenho que estar a  esconder a garrafa de uísque, para o sogro não se exceder e poder conduzir direitinho no regresso a casa. Vou-me poupar às teorias negacionistas do primo Osório, que continua a teimar que o homem nunca foi à Lua. Não terei que me abastecer com garrafas de águas das pedras, sais de fruta, carvão vegetal e kompensãns, para acudir a arrotos, azias, crises de fígado e outras coisitas mais fedorentas, tão próprias destas noites de comilança desregrada em nome do Salvador.

         O puto ranhoso que pergunta a cada cinco minutos, quando chega o Pai Natal, ficará em casa dos pais a torrar-lhes a paciência e a saltar em cima do sofá. Não terei que explicar porque não vou à Missa do Galo, nem terei que inventar desculpas esfarrapadas daquelas que me levarão certamente ao purgatório por alguns anos, do género, estou com um ataque de asma, ou estou a terminar uma gastroenterite.

         Este ano, a tia Elsie não receberá a mantinha comprada no chinês, para aquecer os joelhos com artroses e o primo Valentim não receberá as peúgas da tradição, compradas na feira dos farrapos ou nas promoções do LIDL; tem tantas, que já não cabem na sua gaveta… será uma pausa salutar para as prendas tóxicas. 

         Terei o cão e a gata como companhias, olhando para mim com olhares de cão e de gata, tal como o burro e a vaca olharam Jesus, esperando pelos seus presentes, que já estão debaixo da árvore-de-natal – um osso e um peixe. Eu olharei para o Zoom, tentando estar perto da família, fazendo conversa tonta, perguntando pelo polvo, pelo bacalhau, pelas rabanadas, enquanto me delicio com papos de anjo comprados na Tinoca de Amarante... a família responderá que o polvo ficou duro e que foi uma trabalheira fazer as rabanadas, exactamente como nos anos anteriores, mas sem eu sentir o cheiro do óleo dos fritos e da canela.

         E o resto da noite?

         Estarei ocupada a ler dezenas de mensagens natalícias, todas diferentes e todas iguais da, Sónia, Ana A., Zé, Carlos, Francisco, Celeste, Carmo, Arnaldo, Anabela, Lena, Paulo, Olga, Marta, Sofia, Jotacê, Zigoto, Amélia, Nucha, entre outros. Terei várias horas para ler os muitos artigos de opinião do jornal Notícias de Vila Real, que ainda  não li, especialmente daquela senhora que escreve sem rumo, revoltando os dias daqueles que ainda revelam paciência e tolerância para a ler. Poderei deitar-me à hora que quiser, sem estar cansada e sem hora de levantar, podendo telefonar ao amigo especial, empedernido e casmurro, que insiste sempre, em passar o Natal sozinho, deprimido e tristinho, porque sim.

         No dia de Natal vestir-me-ei de vermelho, semelhante à mãe Natal e abrirei o meu presente - uma viagem para Veneza, para ver o que ainda não vi, passear de gôndola em boa companhia e farei uma expressão de surpresa como se não soubesse que ajudei a reservar no Booking.com. Ao almoço, finalmente poderei fazer uma refeição, cuja ementa, constará apenas de sobremesas, sonho que qualquer gulosa quer concretizar. Todas aquelas doçarias a que tenho direito, levar-me-ão a cometer o pecado da gula com toda a propriedade, com a diferença, que não farei cerimónia, estarei à vontade comigo mesma. Ninguém olhará para mim com um sorriso trocista pensando,  “vais rebentar com a balança” ou, “depois diz que a roupa encolheu”,  e dizendo ”na Idade Média, os mais belos eram os mais gordos” tentanto plantar na minha cabeça, problemazinhos de consciência. Poderei comer com as mãos e de boca aberta, como o outro do bolo-rei… porque se quiser fazer figurinha de labrega, estou à vontade.

         Comerei só os pinhões e as nozes, e deixarei as passas, os figos, as ameixas e as frutas cristalizadas, que gosto menos, sem cerimónia. Não estarei preocupada se a comida chega ou não, se um gosta e o outro não gosta, criando refeições alternativas para quem não gosta de couve, para quem não gosta de bacalhau, para quem não gosta de cebola, para quem não gosta de rabanadas, para quem acha o peru muito seco ou para quem é vegetariano. Haja paciência!  Só tenho que atender egoístamente àquilo que eu gosto – oportunidade única.

         Já um pouco enjoada de tanto açúcar, dormirei uma soneca rápida como sesta revigorante e depois, recomposta desta aventura solitária, irei até à rua vestindo uma máscara, tentando encontrar ninguém que se cruzará comigo no picadeiro das obras da Avenida. Irritada, entrarei no meu carro e dirigir-me-ei até um dos miradouros mais belos do mundo, com vista para o Douro, onde me sinto próxima de Deus, para Lhe dizer umas verdades:

         - Então, Grande Arquitecto, quando terminas com esta brincadeira, pá? Pega masé na rede caça-borboletas e recolhe de uma vez por todas, este vírus maldito. A hora do recreio acabou, ok? O quê, aí onde estás também andas de máscara? O vírus não é obra de Deus? Oh! também pertences ao grupo que acredita na teoria da conspiração? Foi o diabo? Não foste Tu que criaste o diabo? Então?!... Faz o que se espera de Ti. Como? Estás arrependido? E…? Não sabes, porque perdeste o tutorial on line? Como? O diabo sacou-Te a password e trocou-Te a hiperligação? Estudásses!

         A Anita deseja um Feliz Natal a todos, especialmente à D. Fernanda, mãe de uma amiga “espsial” que me abasteceu de toda a doçaria e à Yumi Sayuri que me cedeu um fato de gueixa – protejam-se e sejam felizes.

Publicado em NVR - 23/12/2020

 

10 comentários:

J. A. disse...

ahahaha tu és demais!!!!
J. A.

Maria disse...

Adorei.
Escreves como eu gostaria e, ainda por cima adivinhando-me os pensamentos!
Vou me entregar aos prazeres da gula e, garanto, sem culpa.
Desejo que tudo o que escolheres te faça muito feliz .
Feliz Natal, quebrando tradições .
Bjinho enorme

M. F. Santana disse...

Um Natal à maneira. Beijinho minha querida.

Nuno Té disse...

Anita, I love you.

irmã do Nuno Té disse...

Sou fã

Anónimo disse...

Miga, o teu sarcasmo continua em dia. Desejo para ti e para o Hugo em Feliz Natal. Beijinho
Joana B.

jcordeiro disse...

Muito bem. Até nesta altura a imaginação e a ironia não faltam. Saúde.

J. Cordeiro

Anabela Quelhas disse...

Grata pelos comentários de todos, Feliz Natal.

João Queirós disse...

Como vai a roulote?
Abraço

Carlos Té disse...

ahaha Bj Ana