Eu poderia escrever aquele conto de Natal a puxar ao sentimento e à lágrima, reforçado pela tragédia do Corona, ou mencionando os pobrezinhos e o espírito da paz, do amor e do azevinho que se revela nesta época do ano, o presépio, a manjedoura, os reis magos… seria bonito, lindo, cordato, assertivo e sobretudo sensato... porém, eu não sou sensata, nem quero ficar mais triste do que já estou desde Março.
Todas as situações, mesmo esta, de não podermos estar com a família e amigos, podem ser analisadas pela perspectiva positiva, e é nisso que me irei centrar.
Nesta consoada solitária, em vez das
couves e do bacalhau, irei saborear crepes sagrados e um bacalhau espiritual. Rematarei
com uma nuvem do céu, encharcada conventual e orelhas de abade, sobremesas bem
articuladas com esta data de referência cristã. Claro que não serei eu a
cozinhar, visto que a minha roulote tem uma cozinha minúscula.
Não terei que escolher toilette. Poderei
vestir-me como quiser, e este ano poderei concretizar desejos antigos e
inconfessáveis. Sentar-me-ei à mesa vestida de polícia, de enfermeira, de
hospedeira de bordo, de gueixa ou de mexicana. Imaginem-me. São fetiches que
não devo justificar. Tenho muito por onde escolher, sem me preocupar se vai ou
não agradar.
Não terei que observar a dentadura móvel
da tia Elsie, nem tenho que estar sempre a acertar o aparelho auditivo do tio
Marcel… sim, porque a dentadura da tia Elsie tem vida própria, sempre temo que
ela escape, sobrevoe a mesa de Natal, que eu decoro com tanto amor e carinho, e
aterre no prato das filhoses. Não terei de ouvir as gargalhadas despropositadas
da sogra, nem as suas receitas de culinária especiais, copiadas da revista Tele
Culinária, que comprou há mais de 40 anos, nem tenho que estar a esconder a garrafa de uísque, para o sogro
não se exceder e poder conduzir direitinho no regresso a casa. Vou-me poupar às
teorias negacionistas do primo Osório, que continua a teimar que o homem nunca
foi à Lua. Não terei que me abastecer com garrafas de águas das pedras, sais de
fruta, carvão vegetal e kompensãns, para acudir a arrotos, azias, crises de
fígado e outras coisitas mais fedorentas, tão próprias destas noites de
comilança desregrada em nome do Salvador.
O puto ranhoso que pergunta a cada
cinco minutos, quando chega o Pai Natal, ficará em casa dos pais a torrar-lhes
a paciência e a saltar em cima do sofá. Não terei que explicar porque não vou à
Missa do Galo, nem terei que inventar desculpas esfarrapadas daquelas que me
levarão certamente ao purgatório por alguns anos, do género, estou com um
ataque de asma, ou estou a terminar uma gastroenterite.
Este ano, a tia Elsie não receberá a
mantinha comprada no chinês, para aquecer os joelhos com artroses e o primo
Valentim não receberá as peúgas da tradição, compradas na feira dos farrapos ou
nas promoções do LIDL; tem tantas, que já não cabem na sua gaveta… será uma
pausa salutar para as prendas tóxicas.
Terei o cão e a gata como companhias,
olhando para mim com olhares de cão e de gata, tal como o burro e a vaca olharam
Jesus, esperando pelos seus presentes, que já estão debaixo da árvore-de-natal
– um osso e um peixe. Eu olharei para o Zoom, tentando estar perto da família,
fazendo conversa tonta, perguntando pelo polvo, pelo bacalhau, pelas rabanadas,
enquanto me delicio com papos de anjo comprados na Tinoca de Amarante... a
família responderá que o polvo ficou duro e que foi uma trabalheira fazer as
rabanadas, exactamente como nos anos anteriores, mas sem eu sentir o cheiro do
óleo dos fritos e da canela.
E o resto da noite?
Estarei ocupada a ler dezenas de
mensagens natalícias, todas diferentes e todas iguais da, Sónia, Ana A., Zé,
Carlos, Francisco, Celeste, Carmo, Arnaldo, Anabela, Lena, Paulo, Olga, Marta, Sofia,
Jotacê, Zigoto, Amélia, Nucha, entre outros. Terei várias horas para ler os
muitos artigos de opinião do jornal Notícias de Vila Real, que ainda não li, especialmente daquela senhora que
escreve sem rumo, revoltando os dias daqueles que ainda revelam paciência e
tolerância para a ler. Poderei deitar-me à hora que quiser, sem estar cansada e
sem hora de levantar, podendo telefonar ao amigo especial, empedernido e
casmurro, que insiste sempre, em passar o Natal sozinho, deprimido e tristinho,
porque sim.
No dia de Natal vestir-me-ei de
vermelho, semelhante à mãe Natal e abrirei o meu presente - uma viagem para
Veneza, para ver o que ainda não vi, passear de gôndola em boa companhia e
farei uma expressão de surpresa como se não soubesse que ajudei a reservar no
Booking.com. Ao almoço, finalmente poderei fazer uma refeição, cuja ementa, constará
apenas de sobremesas, sonho que qualquer gulosa quer concretizar. Todas aquelas
doçarias a que tenho direito, levar-me-ão a cometer o pecado da gula com toda a
propriedade, com a diferença, que não farei cerimónia, estarei à vontade comigo
mesma. Ninguém olhará para mim com um sorriso trocista pensando, “vais rebentar com a balança” ou, “depois diz
que a roupa encolheu”, e dizendo ”na
Idade Média, os mais belos eram os mais gordos” tentanto plantar na minha
cabeça, problemazinhos de consciência. Poderei comer com as mãos e de boca
aberta, como o outro do bolo-rei… porque se quiser fazer figurinha de labrega,
estou à vontade.
Comerei só os pinhões e as nozes, e
deixarei as passas, os figos, as ameixas e as frutas cristalizadas, que gosto
menos, sem cerimónia. Não estarei preocupada se a comida chega ou não, se um
gosta e o outro não gosta, criando refeições alternativas para quem não gosta
de couve, para quem não gosta de bacalhau, para quem não gosta de cebola, para
quem não gosta de rabanadas, para quem acha o peru muito seco ou para quem é
vegetariano. Haja paciência! Só tenho
que atender egoístamente àquilo que eu gosto – oportunidade única.
Já um pouco enjoada de tanto açúcar,
dormirei uma soneca rápida como sesta revigorante e depois, recomposta desta
aventura solitária, irei até à rua vestindo uma máscara, tentando encontrar ninguém
que se cruzará comigo no picadeiro das obras da Avenida. Irritada, entrarei no meu
carro e dirigir-me-ei até um dos miradouros mais belos do mundo, com vista para
o Douro, onde me sinto próxima de Deus, para Lhe dizer umas verdades:
A Anita deseja um Feliz Natal a
todos, especialmente à D. Fernanda, mãe de uma amiga “espsial” que me abasteceu
de toda a doçaria e à Yumi Sayuri que me cedeu um fato de gueixa – protejam-se
e sejam felizes.
Publicado em NVR - 23/12/2020
10 comentários:
ahahaha tu és demais!!!!
J. A.
Adorei.
Escreves como eu gostaria e, ainda por cima adivinhando-me os pensamentos!
Vou me entregar aos prazeres da gula e, garanto, sem culpa.
Desejo que tudo o que escolheres te faça muito feliz .
Feliz Natal, quebrando tradições .
Bjinho enorme
Um Natal à maneira. Beijinho minha querida.
Anita, I love you.
Sou fã
Miga, o teu sarcasmo continua em dia. Desejo para ti e para o Hugo em Feliz Natal. Beijinho
Joana B.
Muito bem. Até nesta altura a imaginação e a ironia não faltam. Saúde.
J. Cordeiro
Grata pelos comentários de todos, Feliz Natal.
Como vai a roulote?
Abraço
ahaha Bj Ana
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