24 março, 2021

UTOPIAS

 

UTOPIAS


A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”– Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano in ‘Las palabras andantes?’ de Eduardo Galeano. publicado por Siglo XXI, 1994.

            Somos sonhadores, temos esperança, porque acreditamos nestas palavras sobre a utopia. Imaginamos outro mundo, acreditamos num mundo melhor e vamos esquecendo os maus momentos e reinventamos os bons. Todos nós teremos as nossas utopias. Tudo aquilo que desejamos e temos consciência que nunca atingiremos, fica guardado numa gaveta com esse nome. Não fica esquecido, pelo contrário, é sempre aquela luzinha que brilha para nós diariamente, fazendo-nos avançar, mesmo sabendo que nunca chegaremos lá. É um farol que nos orienta no presente em direcção a um futuro, que pode não ser aquilo que desejamos. Mas ela está lá, teimosamente lembrando-se e lembrando-nos, recusando-se a integrar a memória descrita e justificativa dos nossos projectos, mas sim, desenhando a espiral do sonho que nos faz estar vivos. Se não acarinharmos essa utopia, a realidade converte-se em mais dura e incompreensível, atando-nos os movimentos e tornando-nos cegos, mergulhados no escuro desse caminho sem esperança de nada. Sem utopia caímos na resignação, o nosso sorriso desfaz-se e a tolerância mirra. São muitos os desertos que atravessamos na vida e os desertos não se atravessam sozinhos num contexto de desesperança. Se abandonarmos a nossa utopia, seremos engolidos em plena noite fria do deserto, abandonando o presente e o futuro, cairemos num vazio existencial, incapaz de se suavizar quando escutamos a nossa identidade e ou quando julgamos ver um oásis.

            Existem também as utopias da sociedade, que são tão antigas como a própria humanidade. Perdemos a utopia da República de Platão, perdemos a utopia do Jardim do Éden, apenas os cristãos ainda a possuem, perdemos a utopia de Atlântida, perdemos a utopia de  Thomas More no tempo das descobertas de novos continentes e novos mundos, perdemos a utopia do Contrato Social de Rousseau, perdemos a utopia do comunismo de Karl Marx e diáriamente perdemos a utopia da sociedade neoliberal, que cada vez mais se traduz em contrastes sociais… felizmente perdemos também as distopias do Nazismo e do Fascismo.

            Hoje o “descrédito” das utopias sociais leva-nos para a chamada retrotopia, orientada pelo individualismo e pela busca do passado, como se fosse possível enganar o tempo e repetir modelos, tal como os saudosistas pretendem e andam a suspirar pelos cantos.

            Caros leitores começou a primavera boreal, esta é a única retrotopia em que acredito, a renovação da vida e da natureza, que herdamos anualmente da tradição pagã e nos faz abrir a gaveta das utopias e gerar mudanças em nós mesmos e sempre para melhor.  

Imagem – fotomontagem a partir de: https://segredosdomundo.r7.com/utopia/

Publicado em NVR em 24/03/2021

1 comentário:

Armando Ferreira disse...

cumprimento-a pela elegância dos seus textos