Há dias tristes que não deviam existir.
Conheci-o já eu tinha
12 anos, em Coimbra, porque foi assim que os desencontros da vida decidiram.
Homem sóbrio, discreto,
frugal, bonito, inteligente, informado, modesto, altruísta, humanista, com
sentido de humor e nunca perdeu uma certa ingenuidade, apesar da vida longa.
Até ao final da vida
partilhou o seu conhecimento científico de forma simples e informal, com rigor
e detalhe, revelando o seu gigante mundo de saber e boa memória.
Recordo-me dele em
diversas circunstâncias, Coimbra, Bragança, Viseu e finalmente em Vila Real.
Médico de profissão,
formado em Coimbra e na Suíça. Não hesitava em socorrer quem lhe pedisse ajuda.
Salvou vidas, muitas. Casos que pareciam impossíveis e perdidos, ele puxou-os
para a cura, conferindo-lhes muitos anos de vida. Poderia exercer a sua
profissão nos melhores hospitais do mundo, mas ele tendia sempre para trás do
Marão, para tratar pessoas com poucos recursos.
Possuía mãos grandes, e
bem desenhadas, eu seria capaz de as identificar em qualquer lado, ágeis e de
grande precisão. Treinava o bisturi na linha recta. Achava-se feio, quando era
um homem elegante, belo, distinto e cavalheiro.
Tinha um orgulho
desmedido das suas origens e um amor eterno pelo sítio onde nasceu, a aldeia de
Justes.
Sobreviveu à maior
perda que se poderá ter na vida, um filho.
Era um homem de
afectos, penso que o seu maior afecto seria o seu amor e dedicação pelo ser
humano e a forma de o tratar através da medicina. À noite era incapaz de se
deitar sem ir ao hospital visitar os seus pacientes e logo de manhã, voltava.
Aparecia discretamente, silencioso à porta do quarto ou enfermaria, falava
baixo, revelava tranquilidade e isso dava aos pacientes um conforto e segurança
enormes.
Também gostava de cães
e plantas, sabia imenso sobre botânica e mineralogia.
Ele foi um dos meus primos
mais velhos e apesar da diferença de idades e da minha pouca experiência na
época, confiou-me a concepção arquitectónica da sua casa, que tentava
harmonizar uma quinta na margem esquerda do rio Corgo, com todas as árvores e
arbustos autóctones ou que habitavam na sua imaginação. Foi projecto que nasceu
e cresceu com muita conversa entre os dois, reflexões e opiniões diversas sobre
tudo; eu sempre admirando a sua sabedoria multifacetada, ele corajosamente
entregando-se à minha criatividade e aos traços que iam nascendo no meu
estirador.
Fez-me perder o receio
de tocar no seu cão enorme, mastim espanhol, que quando o visitava, tentava meter
a cabeça enorme na janela da minha 4L, para me lamber, e não cabia.
Adorava andar em obras
e tinha bom gosto. Partilhava por vezes uma velharia ou outra, que lhe vinham
ter às mãos, revelando a sua sensibilidade e conhecimentos artísticos.
Andar com ele de automóvel,
parecia que andávamos sempre em veículo de emergência.
Nos piores momentos da
minha vida, foi sempre uma plataforma de apoio e conforto, que nunca esquecerei
e lhe serei eternamente grata. Fez de otorrino, obstetra, ortopedista, internista,
psicólogo, nas horas que calhava… Nos últimos anos lia o que eu escrevia neste
jornal e telefonava-me por vezes a elogiar ou comentar: “Quando te leio, parece
que estás a falar comigo. Escreves como falas.”
Visitava-o, a conversa
agigantava-se, adorava que eu partilhasse peripécias da aldeia onde nasceu ou
situações que lhe fizessem recordar a sua infância e a nossa família. A risada
nascia e crescia. Falávamos também de pessoas antigas, descodificávamos a nossa
genealogia, os tios, os primos, os avós e bisavós. Dizia-me sempre que o meu
pai era apaixonado pela minha mãe e que se recordava deles a namorar.
Eu baralhava sempre o
dia do seu aniversário, porque eu e outros familiares nascemos em Março, e
normalmente lembrava-me sempre com um dia de atraso. Imperdoável.
Finalmente um elogio à
sua companheira, que nos últimos anos de vida, se excedeu sempre em carinho, protecção,
paciência e zelo.
Há
dias tristes que não deviam existir.
Escolheste o dia dos
médicos para nos deixar. Vou ter saudades tuas, até sempre, Otílio. (18/06/2024)
Publicado em NVR- 26/06/2024
RIP (Requiescat in pace) - Otílio Palheiros Figueiredo
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