FAZ 50 ANOS
De crisálida
a borboleta
Há
vinte e quatro horas, eu era uma adolescente alegre, despreocupada, feliz e
hoje transformo-me numa mulher. Despi a adolescência em Luanda, pouco antes de
entrar no Aeroporto Craveiro Lopes, com destino a Lisboa, já sem esperança de
regresso breve. Abandono essa fase de transição da vida e adquiro competências
rápidas para aceder à maturidade social.
Entro
na idade adulta, tal como uma crisálida que se transforma em borboleta, da
noite para o dia, encurtando preguiças, dúvidas juvenis, inseguranças,
rebeldias e acelerando a autonomia, a tentativa de um maior discernimento e responsabilidade da maturidade.
É
nesse estado do meu desenvolvimento holístico que entro no avião, desconhecendo
onde me levará esta metamorfose activa que levo comigo.
Tento
resistir ao choro. Não entendo esta retirada precipitada, desconheço razões que
justifiquem a determinação do pai em sair e não voltar a Luanda, após as
férias. Despedi-me da minha cidade, contrariada, receando nunca mais ver os
meus amigos. Nasci e vivi em Luanda os últimos anos. Sete anos, os melhores
anos da minha vida, com o desabrochar da minha personalidade, da minha
rebeldia, o desenho das minhas convicções e valores, numa cidade encantada,
cheia de contradições e de assimetrias, mas motivadora, exuberante, apostada em
crescer e em desenvolver o potencial de um território.
Após
a ceia servida a bordo, já passa da meia-noite, os pais tentam dormir. Fingimos
dormir. De olhos fechados, penso em tudo que se passou nestas últimas vinte quatro
horas e a despedida inesperada da cidade de Luanda, determinada pelo pai, mês e
meio após a Revolução dos Cravos[1].
Luanda parecia serena e tranquila, reinava a paz em todas as ruas, porém, o pai
considerou que retirar a família para a Metrópole, agora, é a decisão mais
sensata e assertiva.
Fingimos
dormir. Sim, fingimos. Como alguém poderá dormir vivendo este trambolhão
impensado? Ao contrário das outras viagens de avião, não me interessa em que
lugares viajamos, se vou ou não à janela, nem presto atenção a ninguém. Faço um
balanço da minha vida e das inseguranças que me invadem nestas últimas horas,
de olhos fechados tento controlar a minha respiração, tornando-a aparentemente
regular, cadenciada e serena. Sinto que parte da minha vida foi amputada sem eu
perceber as razões, e esta ferida marcar-me-á para a vida. Não me matará, mas
irá moer-me toda a vida sem escolher hora ou local.
Não
consigo projectar-me no futuro, prever o que acontecerá em Setembro, quando se
iniciar um novo ano lectivo, e como me irei organizar. A caminho do aeroporto,
o meu pai deu indicações precisas à minha irmã que ficou em Luanda, para ir ao liceu,
obter o meu certificado de habilitações do 6º ano / 1º ano do Curso Complementar
e enviar com urgência para a Metrópole.
Vou
dormitando por cansaço, encostada ao braço do pai, ou melhor dizendo, o sono
tropeça em mim ao longo da noite. A minha cabeça parece um labirinto de ideias
e situações que me empurram para este amadurecimento repentino e prematuro, que
se traduz anatomicamente, num brutal nó na garganta. Apesar de contrariada, ainda
no interior do avião, decido não pressionar os pais com o regresso a Luanda.
Esta mudança repentina na nossa vida, deve ser ainda mais penosa e complexa
para eles, que já têm cinquenta anos e grandes responsabilidades. Aguardarei
serenamente, tentarei não criar conflitos, fingirei até algum entusiasmo para
que não se preocupem comigo. Terei de aprender a digerir tudo sozinha. Serei
uma óptima aluna para fazer o meu curso rapidamente, se o pai conseguir
suportar as despesas, confio que sim.
Chegamos
a Lisboa, sem grandes conversas, uma viagem inundada por mutismo e pessimismo.
Esta viagem não se reveste de alegria nem de entusiasmo, como todas as
anteriores, em que eu exteriorizava por excesso, a minha adolescência divertida
e irónica. A minha metamorfose despe-se de amigos e conhecidos, recheando-me de
um grande vazio existencial e revolta, sem saber o que será o meu futuro e o da
minha família e o que faço ao passado. Parece-me que dispo uma túnica leve e
fresca e visto uma camisa-de-forças, contendo-me, apertando-me e sufocando-me. Não
me foi dado poder de decidir sobre ficar ou partir, porque apenas tenho dezasseis
anos e não sou autónoma.
Em
Lisboa, não vejo militares nas ruas, nem cravos nas mãos das pessoas, como eu
imaginava, vejo cerejas, lá estão elas na rua a vender, tudo parece normal, com
mais animação transpirada em frases escritas em paredes, apelando à Revolução
de Abril. O entusiasmo de algumas pessoas contrasta com o nosso constrangimento,
a nossa contenção, os nossos sucessivos nós na garganta. Os táxis continuam a
cheirar a combustível, a estofo mal lavado e o rosário continua pendurado no
espelho retrovisor, a oscilar a cruz durante a viagem. Lisboa continua
movimentada e parece-me iluminada já pela luz do Verão. Oiço uma carrinha com
um megafone a percorrer as ruas perto do aeroporto, emitindo uma canção que
apela à revolução e anuncia um comício.
Tomamos
a rota da aldeia transmontana onde os pais nasceram, onde estão as origens da
nossa família e onde conservam uma casa adquirida pelos pais no pós-guerra.
Vivi nessa aldeia alguns anos da minha infância e nas férias dos últimos quatro
anos.[2] Este
ano não é igual, não sinto ansiedade, nem alegria, ao pensar no reencontro
familiar. Sinto peso na alma, como se carregasse um fardo de toneladas de
saudades, que já se manifestam, recentes e densas e que me asseguram tristezas
futuras, amanheceres apáticos e entardeceres melancólicos.
Passamos por Coimbra para ver a
minha irmã mais velha que estuda História, na Universidade. Coimbra mantém o seu ambiente estudantil.
“Nem
mais um soldado para a Guiné”, vejo escrito junto às Escadas Monumentais.
Dirigimo-nos para a Rua da Matemática, junto à Real República dos Corsários das
Ilhas. Agora é diferente das outras vezes. Os meus pais expressam cansaço e
desânimo, apesar da alegria do reencontro com a minha irmã. Não conversamos
sobre ontem, sobre a despedida nocturna da cidade de Luanda. Esta é uma
cumplicidade silenciosa que guardaremos para sempre no interior do nosso
coração. Falamos do crescimento da minha sobrinha pequenina, que ficou em
Luanda, sobre as suas primeiras palavras e as suas travessuras. Falar sobre uma
criança sempre dá cor aos diálogos, pacifica a nossa mágoa e imprime alguma
esperança no futuro.
.10 de Junho de 1974 - a
revolução aconteceu há menos de dois meses e está viva na memória de todos. As
cerimónias fascistas realizadas no Dia da Raça, em anos anteriores, para
exaltar o Portugal do Império Colonial, fizeram, este ano, uma pausa para
ajustar reflexões e procedimentos, coordenados com a revolução e com o Portugal
democrático.
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