Com tantos dias para sair, escolhi hoje, a chuva cai
certinha e grossa.
Encontro a Anita, recolhemo-nos debaixo do quebra-sol
da Pastelaria que estava vazia, que neste dia funciona como quebra-chuva e
perguntamo-nos pelo Natal.
Eu, lamentando sempre a minha pouca apetência pelas
coisas da cozinha, facto inalterável na minha vida e a Anita conta:
- Correu bem, festa em família, ainda considerei
fazer férias nessa altura para evitar certos constrangimentos. Toda família estacionou
os carros em Codessais, porque na minha rua tem dois passeios com adrianitos
extra-longos, fazem lembrar os extra-longos da polícia de choque. Os mais
velhos, a tia Alice, pediu à assistente do lar para a levar, e o tio Antenor,
como foi bombeiro, foram os bombeiros levá-lo.
- Essa dos Adrianitos já é piada velha.
- Velha, mas continua a provocar estragos. Olha nós,
aqui as duas à chuva, sem sítio para nos abrigar, com os carros lá longe… os
outros vão para o shopping e nós a fazer trocas do Natal no comércio
tradicional!
- Mas conta, como foi?
- Olha dois packs de Água das Pedras que foram à
vida, já todos têm estômago frágil, bebem uma Cola e arrotam à Cuba Livre,
bebem um Favaios e já fazem estragos como se tivessem marchado 5 Caipirinhas.
Estivemos muito compostinhos à mesa, a tia Fátima até colocou uns óculos
vermelhos encimados com o pinheirinho de Natal e um presente, comprados… só ela
sabe. Este ano estivemos menos pessoas. Tive que fazer umas pizzas para os mais
novos nos deixarem em paz com a ementa. O Tomás só largava a consola para vir à
mesa sacar a mousse de oreos e o bolo de bolacha. Está a ficar com ar de
lunático, porque vive num mundo virtual, já tem os dedos polegares maiores do
que os outros. O Francisco sempre a fungar desde as 5h da tarde, e a perguntar
a que horas chegaria o Pai Natal. A
Maria com o telemóvel da mãe, a vestir e despir bonecas. O Eugénio já fez 16
anos, pintou o cabelo de loiro, depilou as sobrancelhas, as orelhas dele
viraram dois audiofones e quer que lhe chamem Genita, não sei se com G ou com
Jota. A tia Alice a queixar-se da
ciática, queria saber onde se arranja canábis, porque lhe disseram que tirava
as dores; afundava-se no sofá e depois era preciso um “guindaste” para a pôr em
pé. O tio Antenor a implicar com a televisão e a perguntar a cada um de nós, se
na Consoada não transmitiam o Preço Certo. O Alberto sempre a dizer que a mãe
dele é que fazia boas rabanadas e a tentar convencer-me a ir passar o ano com o
Quim Barreiros na Avenida. O Paulo e a Ana Paula foram dançar com os
pauliteiros para recolher dinheiro para uma ONG. A Helena comeu de tudo, mas
com a promessa de só comer sopa sem batata até ao ano que vem - trabalha na
TAP, está a ver se a despedem. O meu
primo Silvestre fez uma cave e anda a revesti-la com isolamento que se usa nas
salas de raios X, foi difícil convencê-lo a vir passar o Natal connosco. Fica
furioso comigo, quando lhe digo que morrerá sozinho e esfomeado dentro do seu
bunker caseiro. Estava convencido de que esta consoada marcaria o início da
guerra nuclear. Tivemos que lhe dar um Xanax.
- E a tua amiga de Timor? Não foi?
- Deslocou a retina e agora amuou, quer passar o
Natal sozinha.
- E aquele teu tio mais velho, muito divertido, que
fazia o joelho da porca?
- Não foi, foi passar o Natal em sítio recomendado
por Leandro Karnal, com uma menina que está loucamente apaixonada por ele, e
lhe chama SugarDaddy.
- O teu primo Joaquim?
- Ah, esse pegou na mala e abalou para a Suíça. Fez ele
bem, manda fotos no lago Léman, banhinhos quentes em Saillon, chocolate quente
daquelas vaquinhas pretas e brancas que dão leite achocolatado… Tentei criar
uma mesa natalícia, com decorações compradas nos saldos do ano anterior, com os
lugares identificados com letras enormes, porque já estamos todos meio pitosgas;
o arroz de polvo saiu um pouco salgado e a couve com muita fibra – as mudanças
climáticas dão nisto! O polvo salga-se e a couve fibra-se! - olhou em volta e
sobre os presépios de rua, ensopados e devastados com tanta chuva, apenas disse:
Coitados, estamos em ano de guerra!
Mencionámos toda a sua família, um a um, e de
seguida contou sobre as prendas, as velhas ideias das mantinhas, os caquinhos e
as peúgas, quando seria muito mais interessante oferecer cheques do
supermercado ou viagens a prestações. As dos mais velhos ainda vinham com o
preço colado.
Despedimo-nos. Desejei-lhe bom ano. Disse-me que já
tinha lugar na janela da felicidade, para o Réveillon. Não entendi, mas em todo
o caso pedi para guardar lugar também para mim, porque estou saturada do
romance da TAP, da Alexandra Reis e das indemnizações que se praticam há vários
anos e que, infelizmente, nunca escandalizaram ninguém, na rotatividade dos
jobs... e já agora das aposentações dos deputados. Habituem-se, é o país que
temos, mesmo assim melhor do que muitos outros.
De guarda-chuva XXL, daqueles muito invejados, onde
repousam precisam de guarda, para não mudar de dono, atravesso pequenos cursos
de água na Avenida, que comprovam facilmente um teorema da engenharia
hidráulica: a água corre para a cota menor. E eu, cota maior, com bota de Mulher-Aranha,
onde pousa, agarra e não escorrega, imaginando que atravessar o rio Kwanza seria
bem pior. Aqui pelo menos não tem jacaré! Penso na sapiência e paciência
daqueles, que esperam tranquilamente, que a chuva passe - afinal é uma boa
estratégia. Porque não fico em casa?!!!
BOM ANO
29/12/2022
Publicado em NVR 4/01/2022
2 comentários:
Amei como sempre a estória da Anita, coitada, que canseira.
Aposto que deseja que tão depressa não seja Natal 🎄. É que Natal agora, é como tudo. É quando um homem quiser. 😘
Top. Já tens muitos textos da Anita, Pensa num livro.
Beijinho
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