ÉS FELIZ?
Sou escandalosamente atrevida, às
vezes inconveniente, indo directa ao assunto e pergunto:
- És feliz?
No início surpreendia-me com a
hesitação e a perplexidade que lia nos olhos dos inquiridos, pessoas maduras e
experientes, como se a pergunta fosse um problema difícil de termodinâmica…, agora
já estou atenta e à espera disso.
Após esta pergunta simples, parece
que vejo o filme que passa no interior do meu interlocutor, que equivale à sua
idade. Uma retrospectiva difícil de verbalizar, mas impossível de esconder, o
desconforto e todas as contradições despertadas com esta pergunta tão simples.
Uma pergunta que queima.
A pergunta obriga-os a fazer uma
auto-avaliação normalmente penosa, nos seus canais vivenciais, que ora se
transforma em avenidas de êxtase, ora em ruas cheias de monotonia e rotinas, ora
em becos cinzentos e sem saída. Tomam consciência da passagem do tempo, da
descoloração da alma e a resposta que deveria ser verdadeira, por vezes não é.
Vale o sim, vale o não, ambas são difíceis de exteriorizar. É difícil assumir
que se fez más escolhas, que somos incapazes de nos renovar, de questionar e de
mudar. Mudar é sempre muito difícil. A mudança não se adquire na farmácia, a
mudança está dentro de nós e é difícil de conquistar.
Os questionados por vezes tentam
contornar a resposta utilizando discurso demagógico como argumento, tentando
iludir a minha clarividência e eu apenas travo a conversa e explico:
- Apenas quero um sim, ou um não, ou
ainda um nim. Basta-me isso. Basta-me a revolução interior que sentiste em
poucos segundos, e que eu consigo ler no teu olhar. Não interessa fazer a
contabilidade das ausências e das presenças, das incertezas e das angústias.
Quero a contabilidade feita na chapa como se este fosse o teu último dia, sem
projecções dos amanhãs e as decepções do passado. És feliz hoje?
Esta pergunta andará vários dias a
navegar na mente do questionado, provocando quiçá algumas horas de insónia e de
mal-estar. No final do dia olhar-se-á nos seus próprios olhos ao espelho,
descodificando todo o seu coração, desparadoxando a sua mente… um dia após o
outro até praguejar contra mim:
- Raios partam a gaja que me veio
tirar o sossego! Não tinha outra pergunta para me fazer?
Esquecem-se de que se deveriam
perguntar muitas vezes ao longo vida. Sou feliz? Claro que se põe a questão
filosófica sobre a felicidade, se existe ou não… mas, poderemos apostar em
sermos menos infelizes.
Há uma tendência: Os que são mais
infelizes, e que têm dificuldade em assumir as inseguranças, os desencontros, sentem
muita resistência e falta de coragem para a mudança, mentem e dizem que são
felizes. É mais fácil. Não se comprometem apesar do desconforto lhes apertar a
garganta. Os mais inquietos e frontais e provavelmente os que contabilizaram
mais momentos felizes, não receiam em dizer que têm muitos momentos infelizes.
Os verdadeiramente infelizes, não
conseguem mudar, fecham-se no seu mundo bafiento, numa modorra doentia, a ver
televisão e a beber uma cervejola ocasionalmente e a tomar o comprido para o
colesterol. Mudar dói. Mudar envolve perdas e ganhos e já que é assim, decidem
ficar na mesma, poupa raciocínio e uma série de avaliações/decisões, que os poderão
retirar das suas zonas de conforto. É melhor continuar naquele diálogo “profundo
e construtivo” com o cônjuge ou parceiro, que mais parece um copo de água insalubre:
- Chega-me um guardanapo, por favor.
/…
- Queres bem-passado ou mal-passado?
/…
- Passa-me o sal. /…
- Comi de mais. /…
- Amanhã vai chover?...
E depois passam para a diversão, um vê
telenovela na TV da cozinha e o outro vê o futebol na TV da sala. Uma diversão
que tolhe!
A mulher substitui o rolo do papel
higiénico no WC, o homem arrota ao levantar-se da mesa, ambos atiram o olhar
gasto para fora da marquise e recolhem-se numa inércia gritantemente acomodada.
Um dia perguntei ao psiquiatra:
- Como estamos de felicidade?
… e a resposta foi surpreendente:
- 90% dos casamentos são infelizes.
Ser feliz dá muito trabalho.
- E os casais aceitam isso, não
querem ser felizes com outras pessoas, noutros contextos?
- Dá menos trabalho continuar assim.
Caro leitor, já se questionou? De que
lado está?
Publicado em NVR 20/07/2022
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