A primeira vez na vida que cumpri um minuto de silêncio foi por Salvador Allende, em 12 de Setembro de
1973.
Ainda não se
adivinhava a revolução e o silêncio era um estado comum de sobrevivência, mas
cumprir um minuto de silêncio, homenageando uma personalidade que deixou de
existir neste mundo terreno, era uma postura desconhecida para mim. Ou a
personalidade era importante e fazia-se luto nacional, com bandeira a meia
haste ou era uma postura subversiva de impensável concretização.
Só vim a descobrir o seu verdadeiro significado anos mais tarde, pois eu,
adolescente, nascida e criada neste país condicionado pela desinformação, nem
sabia quem era Salvador Allende.
Viajava de
comboio, entre as cidades do Porto e de Lisboa, ainda não havia comboios alfa,
a CP apenas dispunha de foguetes e rápidos, o que para a época era um luxo,
pois viajava-se confortavelmente e mais rápido do que de automóvel.
Lembremo-nos que de Bragança a Lisboa eram nove horas de distância
(parafraseando a letra de Xutos e Pontapés, Para
ti Maria).
Era uma tarde
quente de final de verão, e eu permanecia em pé, junto às janelas do corredor
de acesso, a apanhar as lufadas de ar fresco, no meu rosto de adolescente. Tudo
para mim era novidade e eu gostava de me armar à janela do comboio, com os
meus cabelos ao vento, exibindo o meu equilíbrio e a minha
desenvoltura do saber estar à
janela fingindo concentração na paisagem - coisas de adolescente de quem se
imagina a desfilar, permanentemente, na passarela da vida.
Apercebi-me
que o comboio desacelerou, entrou numa marcha cada vez mais lenta, até que se
imobilizou no meio do Ribatejo – os campos de arroz eram a paisagem. Não
percebi o que se passou. Pelo rosto dos passageiros, nem eles perceberam.
De repente,
alguém entrou na carruagem onde viajava, deslocou-se rapidamente pelo corredor,
cruzou- se comigo um jovem e passou-me para a mão um panfleto, onde se
apelava para se fazer um minuto de silêncio em memória de Salvador Allende e
explicando o golpe militar no Chile, tendo eu lido apenas as letras maiores.
Surpreendida,
seguindo com o olhar aquela personagem
que rapidamente desapareceu no final do corredor, senti a mão do meu pai, a
puxar-me delicada- mente para dentro da cabine, correndo a porta de vidro.
Não foi
preciso explicar nada a ninguém! Descodifiquei em segundos o olhar e a
atitude do meu pai. Rapidamente, sentei-me e escondi o panfleto sob a minha
almofada do assento.
Momentos mais tarde, tendo o comboio readquirido a sua marcha, dois indivíduos vestindo total- mente de preto, passavam revista ao comboio. Acercaram-se da nossa cabine, abriram a porta de correr e espreitaram.
Todos
nós fingimos dormir.
in "O FATO QUE NUNCA VESTIMOS" - Anabela Quelhas
1 comentário:
Onde estaria eu nesse dia?
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