De fado não gosto
De fado não
gosto, nem desgosto. Não me diz nada. Pronto! Não gosto mesmo. Lamento
decepcionar quem me lê, mas não aprecio fado.
A primeira vez
que escutei e vi, foi através da RTP, em registo a preto e branco; depois acompanhei
os meus pais para ver “Capas Negras”, o famoso filme português com Amália Rodrigues,
como actriz, no tempo em que a voz e a articulação mandibular se descoordenavam
facilmente, e finalmente tive o trauma dos traumas, durante três semanas, num
concurso de montras do Natal, um estabelecimento comercial candidato
localizava-se no R/C do edifício onde eu habitava, homenageou Amália Rodrigues
e tive que suportar diariamente o fado da Mariquinhas, foi no Domingo passado que passei, à casa onde vivia a Mariquinhas…
e passei-me.
As minhas
preferências melódicas identificam-se mais com as “pedras rolantes” e toda a
rockalhada posterior, ficando difícil comover-me com as histórias dos amores
empedernidos, das desgraças da vida, que fazem chorar as pedras da calçada,
retratadas no fado. Não tenho sensibilidade apurada a esse ponto. Aprecio
Brell, Reggiani, Cohen, mas fado, fado, não. Fico até um pouco constrangida quando
estou em Lisboa e me convidam para ir a uma casa de fado e eu recuso,
confessando este meu defeito, porque de facto o fado choradinho…. Nada!
Vem sempre
alguém dizendo ah mas a Mariza, ah mas o Rui Veloso também canta, ah mas … Naaa
isso não é a mesma coisa, não se pode meter Fernando Farinha, Marceneiro e
Amália no mesmo saco da Mariza, da Ana Moura e da Carminho e muito menos
comparar com Rui Veloso.
Aprendi a
admirar a AMÁLIA por entender que ela deveria ter valor, por ser conhecida em
todos os países e se tornar um ícone de Portugal. Comecei a achá-la simpática
pós 25 de Abril e interessei-me sempre pelas suas histórias mais pessoais, onde
Amália revelava a sua sensibilidade, autenticidade e generosidade – conta-se
que no fim dos espectáculos, daria de beber à dor e gostava de criar momentos
para cantar gratuitamente para quem não podia comprar bilhete para os seus
espectáculos. Gostava das entrevistas dela, por fazer questão de falar nas suas
origens humildes. A “nossa” Amália, no tempo da outra senhora, conseguiu abrir caminhos,
nem sempre fáceis de percorrer. A partir de 1962 canta Alain Oulman e outros
grandes poetas portugueses, dando algum trabalho à censura portuguesa, e abre portas
para locais com glamour em diversos
países. Eu comparava-a à Maria Callas (reconheço que também não gosto), uma
Sinatra no feminino, sei lá. A minha admiração sempre foi muito enigmática,
devido à minha insensibilidade perante essa expressão musical chamada fado.
Sempre gostei da sua postura sorridente, de já aposentada e que cantava em
situações especiais, já não cantando a letra toda ou porque já não se lembrava,
ou porque já não lhe restava paciência. Adoro o boneco inventado por Joaquim
Monchique.
Quando faleceu,
surpreendeu-me o funeral com milhares de pessoas na rua, transmitido pela TV. Depois
foi para o Panteão. Visitei o Panteão posteriormente, para entender a polémica
de ir ou não para aquele local, que dividia os portugueses. Fui e não gostei.
Deparei-me com essa modernice de colocar a gravação voz de Amália, a cantar em
contínuo e em volume elevado, dentro daquele edifício grandioso, um pouco vazio
e muito fúnebre, perturbando os ilustres depositados nos seus túmulos. Se
querem saber achei deprimente.
Esta semana tomei
conhecimento acerca de uma investigação realizada pela revista Visão sobre esta
figura, tendo comprovado que ela teria apoiado financeiramente algumas famílias
de presos políticos antes da revolução, portugueses exilados e amigos
antifascistas. Reconheço-lhe atitude generosa, grandiosa e perigosa. Percebi
que viveu no fio da navalha, entre o estrelato do regime e “os cortinados de
chita às pintinhas”, tentando equilibrar de forma inteligente, mas muito
perigosa, a uma dupla postura que lhe poderia ser fatal.
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.
David Mourão Ferreira / Alain Oulman
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.
David Mourão Ferreira / Alain Oulman
Publicado em NVR em 6/11/2019
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