26 novembro, 2019

Cheias de Lisboa

 No início da noite, começa a chover.

              A chuva vira mau tempo, temporal, dilúvio.

              Temos dificuldade em arranjar um táxi que nos transporte da Avenida Almirante Reis até o aeroporto. Vamos para o aeroporto debaixo de chuva intensa, o simpático casal acompanha-nos. Vejo através dos vidros, que a chuva cai como num duche descontrolado, impedindo o acesso a algumas ruas que irão aceder mais directamente ao aeroporto. Não me deixam abrir os vidros, nem pôr os braços de fora, como é meu hábito. Temos de fazer um transbordo, porque o taxista quer voltar para trás preocupado com a sua família, que vive em sítio que se vai inundar certamente, e decide, transferir-nos para um segundo táxi e regressar, transportando o casal amigo e depois ir à vida dele, em socorro da família. Chegamos ao aeroporto e encontramo-nos com o Agostinho, que estuda em Lisboa no Instituto Superior Técnico, para se despedir de nós. Informa alguma coisa sobre o temporal que se abate sobre Lisboa e a dificuldade em circular em certas ruas. O Agostinho, meu quase irmão, e pessoa por quem nutro um carinho desmedido, presenteia-me com um espesso livro de BD do Pernalonga, para encurtar a noite que tenho pela frente. Adoro. Fazemos os três, uma refeição ligeira no bar do aeroporto e, finalmente, perto da meia-noite chega a hora de embarcar.

              Já se iniciou o processo de especulação do solo urbano na capital do Portugal imenso, já há patos-bravos a alterar o mapa hidrográfico da textura urbana. Recordo os anúncios na televisão sobre o empresário J. Pimenta “Pois, pois, Jota Pimenta” e as suas torres na Reboleira que marcam esta época do início do desordenamento urbano e respectiva especulação imobiliária de Lisboa e áreas satélites. A alteração dos cursos hidrográficos permanentes e, ou cíclicos evidencia que a natureza não se deixa enganar, nem se ilude com tretas e promessas de progresso. Há, e continuará a haver, vários Jotas Pimenta, este, provavelmente, é mais inofensivo do que todos os outros que se seguirão.

              A chuva cai e não encontra os seus cursos de escoamento naturais, provocando inundações inimagináveis na noite de 25 para 26 de novembro de 1967.

              Chove mais e mais, sem parar. Parece que quem vive lá em cima, se desgovernou, abriu um grande buraco no céu e agora não sabe como o vedar. Tapar com o dedo não dá, mesmo sendo um dedo do Todo O Poderoso.  

              Chove e nada dá vazão a tanta água, provocando imensos estragos e denunciando a miséria em que vive muita gente na capital do reino. A censura portuguesa é incapaz de impedir as reportagens sobre a população pobre, desalojada das suas barracas, devido ao temporal. Em doze horas terão morrido mais de setecentas pessoas e mais de mil, desalojadas – facto dificilmente camuflado por Salazar. Esta última parte passa-me ao lado, pois quero muito chegar a Luanda, e entre Lisboa e Luanda existe um filtro gigante na informação — saberei disso, anos mais tarde.
O Silêncio do Kisanji - AQ





Sem comentários: