O estranho
caso de Sara
A
notícia teve impacto em todos nós, quando percebemos que uma mulher abandonou o
seu filho vivo, recém-nascido, num receptor de lixo. A voz da indignação multiplicou-se
por esse país fora. Todos se indignaram, porém, felizmente, quem tem sentido crítico
sobre as coisas, parou para pensar e questionar o acontecimento, tentando
perceber as razões sobre tal acto inconcebível. A jovem o que faz, quem é? A
situação é de tal forma hedionda, que não basta condenar, é necessário perceber
porque isto aconteceu.
Sabe-se
que a mãe tem 22 anos, era uma sem-abrigo, cabo-verdiana e pouco mais. A Sara tinha
companheiro, prostituía-se, violaram-na, como surgiu essa gravidez? Ela está cá
há quanto tempo? Como chegou a esta situação?
Uma
gravidez é impossível de esconder e esta decorreu até ao fim… com um parto de
rua, realizado sobre a betonilha fria e cheia de micróbios, é difícil ninguém
ter visto. Nada sabemos, apenas o desfecho da situação, um recém-nascido
abandonado no lixo.
Imaginem
que alguém sai de Cabo Verde, para procurar uma vida melhor, sem pai nem mãe
para a proteger/orientar e que afinal, o dinheiro acaba, não tem onde viver e
acaba na rua. Ao frio e ao calor, em que a única coisa que a acolhe para dormir
é uma placa de papelão de um frigorífico, se a carregar durante todo o dia ou
se conseguir escondê-la durante o dia para ser utilizada à noite, e as estrelas
de um céu nem sempre presentes. Temos uma
gravidez que ainda nem sabemos muito bem como foi, mas foi. Esta menina de 22
anos, que poderia ser uma nossa filha, não teve pílula do dia seguinte, consulta
pré-natal, assistência médica, ecografias, vitaminas, acido fólico… também nem
sabemos quando ela percebeu que estaria grávida. Provavelmente percebeu quando já
não tinha aquela pasta de sangue mensal a pegar-se entre as pernas.
(escrevo de forma realista porque a realidade é
dura)
O
sono que sempre acompanha uma gravidez, foi realizado sobre a betonilha da rua,
onde pisamos, onde cuspimos (alguns), onde apagamos as beatas (outros), onde os
cachorrinhos de estimação mijam, onde as pulgas saltam, onde as chicletes se
colam cheias de cuspe dos putos mal-educados que cospem para o chão. Foi ali
onde esta jovem que muitos amaldiçoam viveu a gestação. Teve enjoos matinais?
Teve desejos de comida. Desejos teve seguramente, porque os esfomeados sempre têm
desejo de comer. Será que estas condições degradantes de habitabilidade afectam
o raciocínio, as emoções e os valores?
Então
imaginem-se assim, a barriga a crescer, sem ter um calendário ou um relógio, para
assinalar cada dia que passa nesta contagem regressiva. Cada nascer do sol é um
dia, sem uma parede para desenhar os risquinhos da contagem primária. Enxoval?
Só se fosse feito de um papelão de um micro-ondas…
Ninguém
percebeu ao longo de nove meses que este ser humano vulnerável e cheio de
carências (todas) vivia na rua com a barriga a crescer? Adiantou-lhe bem
estender a mão ou esticar o olhar sombrio e desesperado para quem se cruzou com
ela! Uma gravidez termina algum dia num parto feito de chão todo contaminado
pelos nossos pés. Nós que andamos atarefados, nem percebemos quem está a viver
na rua a parir?
Quem
a ouviu gritar? Quem a ouviu a gemer? Quem lhe facilitou o parto? Teve
dilatações como todas as outras mulheres, mas não teve toques, nem ultrassons. Teria
água para beber? Quem controlou o batimento cardíaco do bébé dentro do útero? Quem
se preocupou com a bactéria streptococcus B? Alguém mediu a tensão arterial da
mãe?
O
bébé nasceu. Poderia sobreviver sem roupa, sem fraldas, sem banho, sem cuidados
médicos, com um cordão umbilical ao pendurão? Claro que não. Meninos da selva,
só existem no mundo Disney, a realidade é outra.
Nós
que estamos no sofá, somos capazes de dizer que esta mulher teria outra opção?
Certamente sim, se tivesse a lucidez que todos temos, pessoas alfabetizadas,
instruídas, sentadas no sofá, a ver televisão com um telemóvel ao lado. Mas ela
teria de facto outra opção?
A
Sara, sabe-se lá porquê, desceu ao último degrau da dignidade e da decência,
situando-se no último patamar negativo do desespero, da desgraça e da miséria
humana, onde os valores, a consciência e a ética, são sufocadas pela falta de
tudo até de lucidez.
Ela
poderia ter feito, isto e aquilo, mas não fez. Provavelmente deveria ter
interrompido a gravidez, deveria ter cuidado do novo ser por forma a ser
abandonado num sítio mais decente e menos arriscado, deveria ter pedido ajuda,
já que ninguém a viu, mas só conseguiu chegar até ao caixote do lixo.
Pelo
que sei, a Roda dos Expostos já referida no artigo de Ribeiro Aires na última
edição, na sua análise histórica, voltou a alguns países europeus, incluindo
Portugal. A lei já permite a entrega de um recém-nascido para adopção sem haver
consequências criminais, mas os procedimentos necessários tornam estes
processos não acessíveis a uma sem-abrigo, porque à partida o parto não é um
parto assistido e ela está fora da matriz da razoabilidade.
O
bébé salvou-se e a Sara foi detida. Há crimes que compensam? Dá que pensar! A Sara passou a ter a nossa atenção, sítio onde
dormir, sítio para comer e fazer a sua higiene, um psiquiatra para a ajudar a
ultrapassar as suas vulnerabilidades psíquicas, os seus desequilíbrios e
distúrbios emocionais, as suas medonhas e repugnantes decisões e provavelmente
condições para voltar a subir os degraus da vida.
Ela
será uma ameaça para a sociedade ou a sociedade é que tem sido uma ameaça
constante para a Sara? Deve ser punida, se chegarem à conclusão que a vida já
não a puniu o suficiente, deverá cumprir pena, mas algum de nós estará em
condições de a julgar assim de forma ligeira apenas pelo acto final de
sub-humanismo monstruoso?.
Quantas Saras vagueiam pelas ruas?
Isto é a nossa vergonha! Quantos bébés já foram abandonados no lixo, sem serem
salvos?
(reflexão sobre um caso, será este o caso de
Sara?)
Publicado em NVR a 20/11/2019
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