06 março, 2024

Era mãe, esposa e dona-de-casa

          

            Era mãe, esposa e dona-de-casa 

Era mãe, esposa, dona-de-casa e mais nada. Obedecia e anulava-se num compromisso sem sentido, com a vida e com os outros.

Mãe doce e bondosa, sobre a qual cabia toda a responsabilidade do mundo na educação dos filhos; esposa dedicada, propriedade do marido, fêmea sempre disponível para este, sempre, sempre submissa e dominada, entre marido e mulher não metas a colher… com sorte não era agredida e sempre se colocava no nível inferior, se possível sem opinião e invisível; dona-de-casa, dona entre aspas, porque realizava todas as tarefas de casa para bem servir o marido e os filhos, na verdade, não era dona de nada, nem do seu próprio nariz, porque se o marido a agredisse, havia sempre uma justa causa a favor dele.

Este era o retrato da maioria das mulheres antes do 25 de Abril. A mulher ficava sempre num plano inferior na sociedade e na família.

Se os filhos fossem problemáticos, a culpa era da mãe, se os filhos fossem inteligentes, puxavam ao pai.

A mulher vivia oprimida e com uma atitude de absoluto conformismo, porque a alternativa era ficar solteira, a trabalhar para os pais ou para um irmão, contribuindo para a sua fortuna. Fazer formação e trabalhar, eram situações muito condicionadas e exploradoras da condição feminina. Era difícil ser autónoma e independente, porque as leis não a protegiam, nem a consideravam. Não constituir família era estar à margem da sociedade que tinha como modelo “Deus, Pátria e família”, lema do Estado Novo.

            A mulher não tinha direito de voto, a mulher não tinha possibilidade de exercer nenhum cargo político. As raparigas tinham acesso limitado à educação e a certas profissões.

Para parecer que se contrariava a discriminação das mulheres, exaltava-se a função da mulher casada: o governo doméstico, no meio dos tachos e das panelas, mas a autoridade pertencia inequivocamente ao homem, denominado chefe de família.

O divórcio era proibido, todas as crianças nascidas de uma nova relação, posterior ao casamento, eram consideradas ilegítimas. A mulher ou dava à criança, filha de outro, o nome do “marido” ou recorriam aos próprios pais para registarem os seus filhos, para lhes dar nome. Era completamente inviável dar o seu nome e o do marido/companheiro actual gerando situações confrangedoras e humilhantes sobretudo para a mulher.

Às mulheres era vedado o acesso a algumas profissões, até se dizia à boca solta, as profissões para os homens e as profissões para as mulheres. A engenharia era para os homens, as letras eram para as mulheres, como se o raciocínio fosse privilégio dos homens. Todas as profissões que exigiam grandes responsabilidades eram para os homens. A magistratura, a diplomacia e a política são apenas alguns dos exemplos de sectores profissionais a que a mulher não podia aceder. Perante as mesmas profissões a mulher era sempre discriminada ao nível salarial e de promoção profissional.

As profissões que exigiam ausência da mulher por algum tempo junto da família, hospedeiras de bordo e enfermeiras, eram vedadas às mulheres casadas. As mulheres casadas não podiam mexer no património do casal e não podiam viajar para o estrangeiro sem ter autorização escrita do marido. As professoras tinham que pedir autorização ao Estado para casar, exibindo prova de que o possível marido, teria um ordenado superior ao delas. No mundo laboral, o marido poderia impedir que a sua esposa trabalhasse e exigir o despedimento desta.

Os namoros tinham que ser autorizados pelo pai das raparigas. Educação sexual não existia, falar sobre sexo era proibido ou feito às escondidas, uma rapariga não chegar virgem ao casamento era o desastre total e uma desonra, um rapaz chegar virgem ao casamento seria motivo de gozo e falta de masculinidade.

O corpo escondia-se e desconhecia-se, inserido numa falsa moral moldada sempre contra a mulher.

Em tudo descrito, havia excepções devido à permissividade de alguns homens ou cumplicidade e companheirismo, por parte de outros na luta pela igualdade.

Como nota final e considerando o Dia Internacional da Mulher em ano em que se comemora os 50 anos pós-abril, refiro a obra “Novas cartas portuguesas” publicada em 1972 pelas escritoras portuguesas Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa e imediatamente confiscada pela censura. As autoras ficaram conhecidas internacionalmente como “as três Marias” e esta obra revelou ao mundo a existência de situações de grande discriminação em Portugal, relacionadas com a repressão da ditadura, a cumplicidade da Igreja, e a condição da mulher (casamento, maternidade, sexualidade feminina).

Era mãe, esposa e dona-de-casa, era tudo isso e mais nada. Obedecia e calava.

Em 1975, depois da revolução, os direitos das mulheres ficaram consagrados na Constituição da República. A luta continua.

Fotografia – Eduardo Gageiro

Publicado em NVR, 06/03/2024



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