Era mãe, esposa e dona-de-casa
Era mãe, esposa, dona-de-casa e mais nada. Obedecia e
anulava-se num compromisso sem sentido, com a vida e com os outros.
Mãe doce e bondosa,
sobre a qual cabia toda a responsabilidade do mundo na educação dos filhos; esposa
dedicada, propriedade do marido, fêmea sempre disponível para este, sempre,
sempre submissa e dominada, entre marido e mulher não metas a colher… com sorte
não era agredida e sempre se colocava no nível inferior, se possível sem
opinião e invisível; dona-de-casa, dona entre aspas, porque realizava todas as
tarefas de casa para bem servir o marido e os filhos, na verdade, não era dona
de nada, nem do seu próprio nariz, porque se o marido a agredisse, havia sempre
uma justa causa a favor dele.
Este era o retrato da
maioria das mulheres antes do 25 de Abril. A mulher ficava sempre num plano inferior
na sociedade e na família.
Se os filhos fossem
problemáticos, a culpa era da mãe, se os filhos fossem inteligentes, puxavam ao
pai.
A mulher vivia oprimida
e com uma atitude de absoluto conformismo, porque a alternativa era ficar
solteira, a trabalhar para os pais ou para um irmão, contribuindo para a sua
fortuna. Fazer formação e trabalhar, eram situações muito condicionadas e
exploradoras da condição feminina. Era difícil ser autónoma e independente,
porque as leis não a protegiam, nem a consideravam. Não constituir família era
estar à margem da sociedade que tinha como modelo “Deus, Pátria e família”,
lema do Estado Novo.
A
mulher não tinha direito de voto, a mulher não tinha possibilidade de exercer
nenhum cargo político. As raparigas tinham acesso limitado à educação e a
certas profissões.
Para parecer que se contrariava
a discriminação das mulheres, exaltava-se a função da mulher casada: o governo
doméstico, no meio dos tachos e das panelas, mas a autoridade pertencia
inequivocamente ao homem, denominado chefe de família.
O divórcio era proibido,
todas as crianças nascidas de uma nova relação, posterior ao casamento, eram
consideradas ilegítimas. A mulher ou dava à criança, filha de outro, o nome do “marido”
ou recorriam aos próprios pais para registarem os seus filhos, para lhes dar
nome. Era completamente inviável dar o seu nome e o do marido/companheiro
actual gerando situações confrangedoras e humilhantes sobretudo para a mulher.
Às mulheres era vedado
o acesso a algumas profissões, até se dizia à boca solta, as profissões para os
homens e as profissões para as mulheres. A engenharia era para os homens, as
letras eram para as mulheres, como se o raciocínio fosse privilégio dos homens.
Todas as profissões que exigiam grandes responsabilidades eram para os homens. A
magistratura, a diplomacia e a política são apenas alguns dos exemplos de
sectores profissionais a que a mulher não podia aceder. Perante as mesmas
profissões a mulher era sempre discriminada ao nível salarial e de promoção
profissional.
As profissões que
exigiam ausência da mulher por algum tempo junto da família, hospedeiras de
bordo e enfermeiras, eram vedadas às mulheres casadas. As mulheres casadas não
podiam mexer no património do casal e não podiam viajar para o estrangeiro sem
ter autorização escrita do marido. As professoras tinham que pedir autorização
ao Estado para casar, exibindo prova de que o possível marido, teria um
ordenado superior ao delas. No mundo laboral, o marido poderia impedir que a
sua esposa trabalhasse e exigir o despedimento desta.
Os namoros tinham que
ser autorizados pelo pai das raparigas. Educação sexual não existia, falar
sobre sexo era proibido ou feito às escondidas, uma rapariga não chegar virgem
ao casamento era o desastre total e uma desonra, um rapaz chegar virgem ao
casamento seria motivo de gozo e falta de masculinidade.
O corpo escondia-se e
desconhecia-se, inserido numa falsa moral moldada sempre contra a mulher.
Em tudo descrito, havia
excepções devido à permissividade de alguns homens ou cumplicidade e
companheirismo, por parte de outros na luta pela igualdade.
Como nota final e
considerando o Dia Internacional da Mulher em ano em que se comemora os 50 anos
pós-abril, refiro a obra “Novas cartas portuguesas” publicada em 1972 pelas
escritoras portuguesas Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho
da Costa e imediatamente confiscada pela censura. As autoras ficaram conhecidas
internacionalmente como “as três Marias” e esta obra revelou ao mundo a
existência de situações de grande discriminação em Portugal, relacionadas com a
repressão da ditadura, a cumplicidade da Igreja, e a condição da mulher
(casamento, maternidade, sexualidade feminina).
Era mãe, esposa e dona-de-casa, era tudo isso e mais nada. Obedecia e calava.
Em 1975, depois da
revolução, os direitos das mulheres ficaram consagrados na Constituição da
República. A luta continua.
Fotografia – Eduardo Gageiro
Publicado em NVR, 06/03/2024
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