Anónimos com nome [1]
A chave não estava na
carteira, tinha ficado no interior de casa, quando saí à pressa, bati a porta e
pronto. Imaginei apelar para os bombeiros para entrarem por uma varanda localizada
na traseira da casa, e partir um vidro, para depois conseguir aceder ao
interior da mesma. O tempo para reparar o estrago e os euros a saírem da conta bancária,
para substituir um vidro duplo de grandes dimensões, começaram também a ocupar
o meu raciocínio, para além da estratégia sobre a forma de tapar,
temporariamente, o buraco a fazer no vidro. Já eram quase dezoito horas de
sexta-feira.
Telefonei para os
bombeiros, depois das explicações necessárias, rapidamente chegaram à minha rua.
Estranhei não trazerem o carro com escada para aceder a sítios altos. Entraram
no quintal, nas calmas, mal ouvindo as sugestões que eu tinha para apresentar,
sem considerar aquilo que eu ia falando, preocupada com a situação, temendo que
esta não se resolvesse rápido e houvesse estragos maiores.
- A chave está por
dentro na fechadura, ou não?
Parecia haver
diferença. Sabia lá eu!!! Um dos bombeiros retirou do bolso das calças um
cartão plastificado e fez as suas manobras de grande precisão, rapidamente
diagnosticou que a chave estava no interior, na fechadura. Não conseguiram
abrir a porta. Pensei que a opção dois, seria montar a escada para aceder à
varanda. Enganei-me, a solução chamava-se Serafim (nome inventado agora), em
versão anónima, que vivia a sua vida discretamente a destravar portas, a
desvendar fechaduras e a desenrascar pessoas que, num repentemente, ficavam do
lado de fora.
Ninguém gosta de
ficar do lado de fora. Fica-se com a ideia de exclusão, como se ficássemos
afastados de algo que parece importante, como se fosse uma área sombreada da
vida, onde não pretendemos estar. Ficar do lado de fora, implica haver dois
lados, e nós pretendemos estar dentro, neste caso, no aconchego do lar, no
espaço onde habitamos, onde temos os nossos objectos pessoais, onde retornamos,
todos os dias, pelo menos para descansar; o nosso espaço que consideramos
seguro, para poder desligar, dormir, sem que nos vigiem, sem que nos ataquem,
sem que ponham em risco a nossa segurança. Este processo de defesa, é o que
verdadeiramente nos preocupa desde que o mundo é mundo – estar em segurança.
Para
Serafim, fechaduras não tinham segredos - trincos, linguetas, canhões, cilindros
- nem de carros, nem de casas, nem de cofres. Alto, a rondar os cinquenta anos,
com um olho meio pisco e mãos ágeis, demorava menos tempo a abrir uma porta sem
chave, do que eu com a chave certa. Sem alarde, sem aparato, discretamente, tal
como procedia na outra vida, chegava, e com qualquer coisa que transportava no
bolso, fazia a magia de abrir o que permanecia encerrado. Só se deslocava aos
domicílios, com conhecimento da polícia, com tudo bem identificado, para não haver
problemas, nem para ele, nem para os seus clientes. Esteve detido várias vezes,
até que resolveu transformar a sua arte, em profissão legal. Desconheço como se
chama a sua profissão, se está catalogada no Ministério das Finanças, mas que
dá jeito, dá. Foi Serafim quem abriu a porta num piscar de olhos, requerendo
isolamento, porque não pretende ensinar nada a ninguém – foram muitos anos a
investir nesta causa, de forma clandestina e com consequências penosas. Todos
se afastaram, e olharam para o lado, enquanto Serafim explorava a anatomia da
fechadura e recorrendo a parcos recursos, que eu também não vi, abriu a porta, sem
arranhão, nem amasso.
Outro
dia qualquer, uma forte corrente de ar, empurrou quase todas as portas aqui de
casa e uma delas bateu com tanta força e estrondo, que nunca mais abriu. Primeiro
procurei pelos parafusos, que ficaram escondidos com a porta fechada, e depois
em desespero de causa, experimentei o cartão plastificado e o gancho de cabelo
sem norte, sem técnica e sem sucesso. Apresentava-se ali um serviço para o
senhor Serafim, o meu anónimo “destrava fechaduras”, que sabe mais do que o
engenheiro que as inventou e é mais rápido do que eu a procurar as chaves e a
abrir as portas com as chaves certas. Neste caso uma porta interior, pensei que
ele até se iria rir do serviço solicitado, bastaria tocar-lhe e com um clip
resolveria o problema.
Lá
veio o Sr. Serafim, sempre conectado com a polícia, dizendo onde estava e com
quem – o GPS da legalidade. Desta vez o diagnóstico foi mais complexo e saiu da
minha previsibilidade.
-
Tenho que ir buscar uma “rebarbadeira”!
-
Credo vai-me destruir a porta?! Já não existe a carpintaria onde comprei as
portas.
- Só lhe vou serrar o
trinco e depois precisa trocar a fechadura.
- Peço-lhe, traga já
a fechadura nova.
E tudo foi explicado
pelo telemóvel para quem estava do outro lado a controlar. Ainda hoje, conservo
o contacto deste anónimo, que merece a medalha do desenrascanço.
Anónimos com nome [1]
A chave não estava na
carteira, tinha ficado no interior de casa, quando saí à pressa, bati a porta e
pronto. Imaginei apelar para os bombeiros para entrarem por uma varanda localizada
na traseira da casa, e partir um vidro, para depois conseguir aceder ao
interior da mesma. O tempo para reparar o estrago e os euros a saírem da conta bancária,
para substituir um vidro duplo de grandes dimensões, começaram também a ocupar
o meu raciocínio, para além da estratégia sobre a forma de tapar,
temporariamente, o buraco a fazer no vidro. Já eram quase dezoito horas de
sexta-feira.
Telefonei para os
bombeiros, depois das explicações necessárias, rapidamente chegaram à minha rua.
Estranhei não trazerem o carro com escada para aceder a sítios altos. Entraram
no quintal, nas calmas, mal ouvindo as sugestões que eu tinha para apresentar,
sem considerar aquilo que eu ia falando, preocupada com a situação, temendo que
esta não se resolvesse rápido e houvesse estragos maiores.
- A chave está por
dentro na fechadura, ou não?
Parecia haver
diferença. Sabia lá eu!!! Um dos bombeiros retirou do bolso das calças um
cartão plastificado e fez as suas manobras de grande precisão, rapidamente
diagnosticou que a chave estava no interior, na fechadura. Não conseguiram
abrir a porta. Pensei que a opção dois, seria montar a escada para aceder à
varanda. Enganei-me, a solução chamava-se Serafim (nome inventado agora), em
versão anónima, que vivia a sua vida discretamente a destravar portas, a
desvendar fechaduras e a desenrascar pessoas que, num repentemente, ficavam do
lado de fora.
Ninguém gosta de
ficar do lado de fora. Fica-se com a ideia de exclusão, como se ficássemos
afastados de algo que parece importante, como se fosse uma área sombreada da
vida, onde não pretendemos estar. Ficar do lado de fora, implica haver dois
lados, e nós pretendemos estar dentro, neste caso, no aconchego do lar, no
espaço onde habitamos, onde temos os nossos objectos pessoais, onde retornamos,
todos os dias, pelo menos para descansar; o nosso espaço que consideramos
seguro, para poder desligar, dormir, sem que nos vigiem, sem que nos ataquem,
sem que ponham em risco a nossa segurança. Este processo de defesa, é o que
verdadeiramente nos preocupa desde que o mundo é mundo – estar em segurança.
Para
Serafim, fechaduras não tinham segredos - trincos, linguetas, canhões, cilindros
- nem de carros, nem de casas, nem de cofres. Alto, a rondar os cinquenta anos,
com um olho meio pisco e mãos ágeis, demorava menos tempo a abrir uma porta sem
chave, do que eu com a chave certa. Sem alarde, sem aparato, discretamente, tal
como procedia na outra vida, chegava, e com qualquer coisa que transportava no
bolso, fazia a magia de abrir o que permanecia encerrado. Só se deslocava aos
domicílios, com conhecimento da polícia, com tudo bem identificado, para não haver
problemas, nem para ele, nem para os seus clientes. Esteve detido várias vezes,
até que resolveu transformar a sua arte, em profissão legal. Desconheço como se
chama a sua profissão, se está catalogada no Ministério das Finanças, mas que
dá jeito, dá. Foi Serafim quem abriu a porta num piscar de olhos, requerendo
isolamento, porque não pretende ensinar nada a ninguém – foram muitos anos a
investir nesta causa, de forma clandestina e com consequências penosas. Todos
se afastaram, e olharam para o lado, enquanto Serafim explorava a anatomia da
fechadura e recorrendo a parcos recursos, que eu também não vi, abriu a porta, sem
arranhão, nem amasso.
Outro
dia qualquer, uma forte corrente de ar, empurrou quase todas as portas aqui de
casa e uma delas bateu com tanta força e estrondo, que nunca mais abriu. Primeiro
procurei pelos parafusos, que ficaram escondidos com a porta fechada, e depois
em desespero de causa, experimentei o cartão plastificado e o gancho de cabelo
sem norte, sem técnica e sem sucesso. Apresentava-se ali um serviço para o
senhor Serafim, o meu anónimo “destrava fechaduras”, que sabe mais do que o
engenheiro que as inventou e é mais rápido do que eu a procurar as chaves e a
abrir as portas com as chaves certas. Neste caso uma porta interior, pensei que
ele até se iria rir do serviço solicitado, bastaria tocar-lhe e com um clip
resolveria o problema.
Lá
veio o Sr. Serafim, sempre conectado com a polícia, dizendo onde estava e com
quem – o GPS da legalidade. Desta vez o diagnóstico foi mais complexo e saiu da
minha previsibilidade.
-
Tenho que ir buscar uma “rebarbadeira”!
-
Credo vai-me destruir a porta?! Já não existe a carpintaria onde comprei as
portas.
- Só lhe vou serrar o
trinco e depois precisa trocar a fechadura.
- Peço-lhe, traga já
a fechadura nova.
E tudo foi explicado
pelo telemóvel para quem estava do outro lado a controlar. Ainda hoje, conservo
o contacto deste anónimo, que merece a medalha do desenrascanço.
Publicado em NVR, 23/03/2023
2 comentários:
Às vezes faz falta ter um Serafim na nossa vida, ou um António, por exemplo, não é o que diz a música “chama o António?”. É que o Serafim que eu conheço não vale um caracol.
Adília Martins 😃
kkkkkkk
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