A Páscoa quando eu era criança tinha outro sabor. Quando somos crianças
e estamos com os nossos pais e irmãos, vivendo na aldeia, tudo é diferente para
melhor. Apesar de embirrar com os jejuns de sexta-feira, ficar todo o sábado a
salivar e a olhar para o pão-de-ló, que só se poderia comer no domingo...
apesar de embirrar com as pérolas de açúcar que se colocavam sobre o folar doce,
para o enfeitar... apesar de naquela idade não apreciar a carne de borregos,
porque os via nascer... mesmo assim, aguardava ansiosa pelas amêndoas, belíssimas
decoradas e “importadas” da Arcádia na cidade do Porto.
Cheirava a bola de carne, leite-creme e aletria, e eu não tinha que me
preocupar com nada, porque a minha mãe tratava de tudo. Recebíamos os padrinhos,
eu as minhas irmãs e o nosso pai, tínhamos os mesmos padrinhos, um casal de
tios do meu pai, e que eu, na Páscoa, me interrogava sempre, porque me tinham
escolhido uns padrinhos tão velhos; afinal o verdadeiro motivo era porque não
tinham filhos. Queridos, honrados, mas velhos. Naquela idade pensava que a
velhice começava quando as mulheres não dançavam mais na festa ou quando os
homens ficavam calvos. Afinal alguns deles eram mais novos do que eu sou hoje.
Mas voltando à Páscoa, a tarde passava-se aguardando o Compasso. A nossa rua
era varrida no dia anterior e todos os vizinhos após o almoço abriam as portas
principais das suas casas para receber o Compasso, e conversando, aguardavam o
sr. padre, o sacristão e os ajudantes, o da caldeirinha e o dos envelopes. Inicialmente
pensei que os meus pais enviavam correio para o Reino dos Céus, depois percebi
que o envelope continha 100 mil reis.
Até que se ouvia uma sineta, lá para o lado das Fontes... depois
ficávamos em suspense desconhecendo se o sr padre virava logo â esquerda para a
rua da Pereira, ou se seguiria em frente, levando o Senhor, primeiro ao Franco.
Nunca ninguém sabia. O sr Padre Sampaio era imprevisível e irritável, e ninguém
ousava perguntar com antecedência. Eu ia beliscando o meu folar, primeiro as
malditas pérolas que sabiam mais a farinha do que a açúcar, depois uma amêndoa,
mais escondida e finalmente passava o indicador na açucarada cobertura alva, e lambia.
A Páscoa era, portanto, um domingo de espera, apenas com a garantia que
terminava à hora do lanche, quando finalmente se comia umas talhadas de bom
presunto ou salpicão e os folares mordiscados por mim.
Hoje, para além de ter saudades dos pais e padrinhos que já partiram, 1/3
das tarefas sobram para mim, as amêndoas são de chocolate, as pérolas já não
existem porque se descobriu que a tinta prateada era tóxica e o pão-de-ló,
considero-o muito seco e foi substituído democráticamente por bolo de bolacha e
outros bolos muito mais saborosos e calóricos, mas sem tradição. Já não nos
interessa o horário do padre, porque já não há padres para ir benzer as casas
da cidade, e estes são substituídos pelo senhor. da retrosaria, o chefe dos
escuteiros e o senhor que vem cá a casa fazer reparações eléctricas, o que já
não faz sentido nenhum
Sobre o almoço principesco... agora, gosto de borrego porque decidi assumir
que a carne nasce na prateleira do hipermercado, pronto, para não virar
vegetariana e ficar com o cabelo encaracolado como a minha psicóloga. Os mais
novos continuam on line e os mais velhos discutem política, terminando sempre
com a célebre frase “É o país que temos!” descartando qualquer esperança e
entusiasmo pelo futuro... há sempre alguém que queira registar o momento com
umas fotos realizadas no telemóvel, que ficam sempre umas fotos um pouco
idiotas, porque a terceira geração encontra-se na faixa etária do armário e
coloca sempre as mãos à frente, e o autor da fotografia fica em primeiro plano e
parece picado pelas vespas.
A seguir ao almoço se estiver sol, vamos dar uma volta pela avenida e
em vez de rezarmos, alguns já nem sabem, apelamos: Ai meu Deus, comi tanto.... Ai meu Deus e
aquele bolo lençol?!... Ai meu Deus amanhã começo a fazer dieta... Ai meu Deus
vou enfartar... Ai meu Deus sobrou tanta comida, teremos que jantar para acabar
com os restos.
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