A propósito de Eurico José Palheiros Figueiredo, foi assim
que o conheci em noite de fuga.
(...)
"Nessa noite ou noutra noite qualquer semelhante, pois
as crianças nem sempre têm uma memória cronológica, feita de colchas coloridas,
mas sim de retalhos…. retalhos, simples e ingénuos, regressámos à casa da
aldeia, no Taunus 12 M azul dos meus pais. O automóvel era velho, a cair aos
pedaços e estava habituado a carregar cimento e tijolos para as obras. Quando
nevava, deixava entrar a neve pelo chão, junto aos pés de quem viajava atrás,
normalmente eu, quando não queria viajar entre o meu pai e a minha mãe, no
banco corrido da frente, pois essa localização fazia-me lembrar a minha
condição de criança - carro velho, mas ainda capaz de realizar pequenas
distâncias.
.… eu ia atrás, mais um casal de jovens, que nunca tinha
visto. Sabia que um deles era meu primo. Uns tempos antes tinha ouvido falar
duma peripécia qualquer com o meu pai, envolvido num pequeno sarilho,
transportando este primo para Lisboa, com uma mala de conteúdo duvidoso,
possivelmente subversivo. Uma história que poderia ter terminado mal, pois o meu primo decidiu sair do carro antes do
final da viagem e o meu pai ficou com a referida mala, esquecida durante dois
dias, no carro estacionado à frente do hotel onde se hospedara, sem saber o que
fazer com ela, nem ao seu conteúdo desconhecido, até ao momento que decidiu
abri-la. Livros, papeis, fios eléctricos, arames, alicates, chaves de fendas e
outras ferra- mentas úteis para certas “intervenções urbanas revolucionárias”,
eram o conteúdo da mala, que foi abandonada às escondidas, algures no Ribatejo.
Era noite escura, eles entraram no carro num sítio qualquer,
já fora da cidade de Vila Real, parecia que tudo estava a ser feito na
clandestinidade, mas bem combinado. Eu,
nessa noite, estava cheia de perguntas para fazer, que não chegaram a ser
proferidas. O casal parecia alegre e simpático, mas havia ali um clima de muita
reserva e contenção, o nervosismo acompanhou toda a viagem, penso que devido à
minha presença, para não ouvir o que não devia, receando que pudesse contar a
alguém, fazendo perigar a segurança e a paz de todos.
Anos depois, descobri que se tratava de uma fuga à PIDE – o
casal exilou-se na Suíça, regressando a Portugal apenas após a revolução de
Abril."
in "O fato que nunca vestimos" de Anabela Quelhas
Só voltei a vê-lo
depois de 1974. Dirigi-me a ele numa tarde de verão na sala de um familiar e
disse-lhe: "Venho aqui para te conhecer melhor, porque só tenho memória de
uma noite escura."- ele parecia uma figura saída do Woodstock, sorridente,
jeans, sandálias e cabelo comprido, e abraçou-me - não tenho fotografia dele em novo.
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