8h45 abre porta automática, entro, medem-me a temperatura,
meto uma mão numa máquina estranha que parece um parquímetro, pinga
desinfectante para eu esfregar na outra que pega no dossier dos papeis.
- O que deseja?
- Assim para não contar toda a minha estória desde dezembro,
posso dizer que venho à “vistoria” e ainda fazer umas reparações na minha mão
escangalhada...
- Pode seguir, o seguinte!
Nem tenho tempo de explicar mais nada, felizmente sou
alfabetizada, e percorro muitos metros de corredor, perpendiculares uns aos
outros, um pouco a custo, porque estou ensonada e o GPS ainda funciona a
bocejar... e oiço, senha 32 balcão 1.
Procuro outro objecto parecido com o tal parquímetro e clico
no écran. O parquímetro das senhas que lhe chamo senhímetro, emite barulhos
tipo desarranjo intestinal e vomita uma senha com o número 35.
Passo para a sala de espera e decido esperar de pé. As
cadeiras baralham-me. São cerca de 30 cadeiras, orientadas para um ecrã onde
não se passa nada, apenas os números das senhas, com som para aqueles que têm
cataratas. Cada cadeira está sinalizada com uma faixa escrita por esta ordem–
doente Covid – acompanhante de doente Covid – sem sinalização que entendo ser o
afastamento da etiqueta respiratória - de novo doente Covid – acompanhante de
doente covid – sem sinalização – doente covid – acompanhante de doente covid.
Todas as outras filas de cadeiras obedecem a esta ordem, excepto uma que tinha
acompanhante de doente covid, mas sem o doente. Decidi ficar em pé.
- Senha 35, cartão de cidadão, segurança social, ADSE e
aguarde que irão chamá-la.
Passados 5 minutos oiço;
- Anita ao gabinete 2.
Medem-me ângulos da mão, catetos e hipotenusas, fazem
registos e cáculos, tira bissectriz e mediatriz, numa problemática geométrica
de mão escangalhada, que frequentou várias sessões de dor, ais e uis com
fartura, no último mês... doi-me aqui, doi-me ali, ai, ui, vou fugir, orientada
por alguém delicado que parece ter força de halterofilista. E mais assim e
assado, inclina para aqui, torce para a acolá, “destroce”... sempre com amiga a
segurar-me na outra mão não escangalhada, dando-me força, sempre a dizer, Anita
estás muito melhor, vais ficar boa, não faças batota... e eu a apertar molas da
roupa, a deformar plasticina e a contar os minutos para o fim, porque dor tem
limites e eu não quero maçar a minha fisioterapeuta, quero que ela respeite a
lei do trabalho.... nem um minuto a mais!
Quem me segura na mão não escangalhada, distrai-me para eu
deixar que dor vire terror, para depois terminar com a mão escangalhada no meio
do gelo, como se faz ao champanhe antes de fazer uma calcinha de seda.
Lembro a música “Fui às sortes e safei-me” do Vitorino,
enquanto aguardo a rotação, simetria sobre os dedos que desconsigo associar, e
sentença final.
- Anita não passou na vistoria! Mais trinta sessões até essa
mão libertar a preguiça e pintar definitivamente a manta.
Voltarei ao mesmo, desinfectante, senha, deitar na marquesa,
dormir sentindo picadinhas tremeliques no pulso, e novamente fazer de conta que
submeto a minha mão escangalhada à máquina de lavar no programa centrifugação,
até conseguir desenhar linhas rectas que são curvas (onde eu já ouvi isto?),
escrever em linha estreita e conseguir fazer malabarismos sem magoar ninguém.
Um dia chego lá.
Beijinhos da Anita
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