NATAL
O que posso dizer sobre o
Natal que já não foi dito?
Na
minha família, temos a sorte de fazermos vários Natais ao longo do ano, por
isso conheço o verdadeiro significado do Natal, porque é tão assumido e tão
entranhado em nós, que nos impele a fazê-lo várias vezes ao longo do ano. Temos
necessidade da presença de uns e de outros numa bolha de cumplicidade, amor
fraternal, vivências e grande amizade.
As pessoas vão faltando nos lugares à mesa, porque
partiram, mas não gostariam de ver os seus lugares vazios, o seu espaço sem
ninguém, ou então, cada um ficar na sua casa a curtir a tristeza da perda. É um
dos avós, depois a avó que se vestia de preto, o tio mais velho, a prima que
partiu antes do tempo... depois são os nossos pais que deixam os lugares
vazios. Passamos a ser nós a comprar o bolo-rei e a fazer as rabanadas,
recorrendo ao livro de receitas da mãe, procurando desesperadamente pelos
mesmos sabores. Quando o espaço fica vazio, afastamo-nos um pouco à mesa para
isso nunca se notar, o espaço dos pratos fica maior, os guardanapos e os
talheres ficam a uma maior distância. Por vezes entra um convidado ou nasce
gente nova, o que amplia o brilho da mesa.
Todos
somos cúmplices do disfarce da ausência, por vezes regista-se um silêncio, um
olhar que passa para lá do tempo... O Natal é a festa dos vivos e da esperança,
portanto é aos que estão cá, a quem nos devemos dedicar. Lembro um Natal
especialmente difícil, porque um lugar ficou vazio a menos de 20 dias do Natal
e este fez-se na mesma, menos exuberante, mas fez-se.
Os
nossos pais que tiveram também os seus vazios e também procuraram o livro de
receitas da avó. Nunca deixaram de festejar o Natal passando a dedicá-lo aos
filhos. Nós.
Normalmente
na noite da consoada ou no dia de Natal, vão desfilando na minha mente,
momentos felizes somados ao longo de muitos anos e são esses que pretendo
conservar sempre na minha memória:
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Os natais passados numa aldeia transmontana, quando era criança, em que a minha
ambição era chegar à corda do sino da igreja, para poder tocar depois das 12h
do dia 24 e recolher musgo para construir o presépio na sala lá de casa. As
minhas irmãs mais velhas não me deixavam tocar nas bolas da árvore de Natal,
porque eram muito bem guardadas durante o ano. Eram de vidro e tão frágeis que
bastava um toquezinho e desfaziam-se em mil pedacinhos. Jogava ao rapa e aos
pinhões com os meus primos e íamos ver a grande fogueira de Natal. Os pequenos
presentes apareciam no dia seguinte, no forno do fogão de lenha que, entretanto,
ainda ninguém tinha utilizado e atribuía-se a surpresa ao Menino Jesus. O Pai
Natal era figura ignorada. Os presentes eram simples e só para as crianças.
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Os natais tropicais, vividos a sul, eu já na puberdade e adolescência, num
ambiente urbano, com concursos de montras, iluminações de Natal, lojas abertas
até às 23 horas e um calor de arrasar. A praia e os passeios nocturnos com
roupa bem decotada e as hormonas aos saltos, faziam parte. As frituras da cultura
gastronómica portuguesa, aguardavam para esfriarem e serem servidas com o
camarão fresquérrimo e as bebidas geladérrimas. A mesa era decorada com mangas,
caju, abacaxi, mamão e bananas
-
Os natais do nosso retorno. Todos juntos de novo, mas sempre recortados em
alguma nostalgia que ninguém ousava verbalizar, um vazio diferente, mas de
carência semelhante. Voltou a fogueira e eu já podia beber um pouco de vinho
fino com o bolo-rei que a minha mãe confeccionava com mestria e sabor
delicioso.
-
E o Natal do ano passado em circunstâncias COVID, com ceia a dois e o resto do
Natal vivido na única pessoa, a ler, ver filmes sobre o Natal, a comer Ferreros
e Raffaellos, a reflectir sobre o que, na verdade, interessa na vida, o que
falhou na minha e os grandes sucessos que já vivi. Pensei obviamente naqueles amigos
zangados com o Natal, que sempre o passam sozinhos por opção, vestindo o pijama
dia 24 às 18h, desligam os telefone e telemóvel e reaparecem no dia 26,
fingindo-se bem-dispostos, com as lágrimas embrulhadas em lenços de papel, guardados
discretamente no bolso do pijama.
Quando
atingi a maior idade, decidi que eu construiria os presentes de Natal oferecendo-os
a pessoas que considero muito especiais. Entre ir às compras e limitar-me a
comprar aquilo que outro imaginou, e fazer prevalecer peças feitas com a minha
imaginação, decidi por mim. O Natal passou a ter ainda mais significado. Demora
mais tempo, dá mais trabalho, porém, enquanto trabalho penso na pessoa a quem
se destina, fazendo um refresh da nossa relação, lembrando quando essa
pessoa entrou na minha vida, o que vivemos juntas, as nossas lutas e as nossas
diversões. Foram as casinhas de barro, os crochets minúsculos, os desenhos, as
pinturas, os bordados e atualmente os poemas e os vidros.
Que
dia é hoje?... Já só faltam dois dias e
eu tenho tanto para fazer!
Feliz
Natal.
Publicado em NVR 22/12/2021
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