BRASEIRA, MESA E CAMILHA
É
aborrecido o Inverno ter vagas de frio, chuva, gelo, neve... se assim não fosse,
o Inverno até seria suportável. Seria evitável sentirmos frio, ter frieiras e
toda a panóplia de constipações, gripes e pneumonias, daí resultantes. Poderia
estar frio só na rua dos meus vizinhos, nevar apenas na televisão, gelo só no
frigorífico e granizar na preparação de bebidas, para ouvirmos o shlop, shlop, das
pedras de gelo a bater no shaker e a chuva poderia cair entre as duas às seis
da manhã. Chegaria muito bem.
Qual
é o encanto da neve, se lhe tocamos e até os ossos doem?
Fazíamos
de conta que seria apenas metade do ano, com outras paisagens, árvores sem
folhas, o sol um pouco lixiviado e aguardaríamos que o tempo o passasse no seu
ritmo normal ente os equinócios, sem estarmos sempre com saudades da Primavera
e do Verão.
Lembro-me
quando havia carvoarias em Vila Real. Acho que havia várias. No final da tarde,
nas ruas com pouco movimento, viam-se pessoas a fazer a braseira para depois a transportar
para dentro de casa, elevando um pouco a temperatura dos lares.
Os
recipientes circulares, uns de chapa, latão e outros em cobre, acolhiam os carvões
que depois se incendiavam para entrar em atividade calorifica, cercados com um
círculo de cinza e com uma prata (resto de uma tablete de chocolate) que protegia
o cento da braseira para aguentar as brasas acesas, várias horas.
Era
obrigatório ter um estrado de madeira que permitia suspender uns centímetros a
dita braseira, para evitar o contacto com o pavimento e simultaneamente criar
uma plataforma de madeira hexagonal, para os friorentos apoiarem os seus pés
calçados com grossas meias de lã para se aquecerem na beirinha da braseira.
No
final do dia era vulgar ver vários fuminhos a elevarem-se entre o casario, resultando
da queima do carvão.
Mais
tarde apareceu a mesa redonda com estrado inferior, que permitia o uso de uma
grande toalha denominada camilha, de origem espanhola, inicialmente comprada
nas fronteiras com nuestros hermanos, com dimensão adequada a cobrir
toda a mesa e descer até ao chão, contendo o calor daquela pequena fonte
calorífera. Quando essa mesa apareceu, era um luxo, lembro-me que talvez a meio
da década de 60 e comprava-se numa loja no largo de S. Pedro. As mesas eram
baratas, feitas em pinho mal acabadas, porque o que interessava era a estrutura
para cobrir com a tal camilha.
A
família utilizava-a para fazer as refeições e para continuar o serão até irem para
a cama, acompanhadas por uma botija de barro ou metálica, cheia de água muito
quente, ou aparelho de aquecimento artesanal para meter entre os lençóis.
Eram
estas trivialidades que nos confortavam há uns anos. O maldito do Inverno, do
granizo, do gelo e da neve não tinham grandes opositores. Aquecimento central?
Quem tinha? Pouquíssimos. Ar condicionado? Caldeiras e recuperadores de calor? Eheheh eram pura
ficção científica. As casas das aldeias tinham sítio nas cozinhas para fazer
fogueira ou grandes lareiras que tornavam a vida mais confortável. Na cidade
era a braseirita. Os compartimentos, quanto mais pequenos, melhor – menos ar e menos
paredes para aquecer.
Maldito
inverno!
O
aparecimento da braseira eléctrica e da escalfeta já foi uma grande inovação
tecnológica, mas as facturinhas da electricidade ao fim do mês, escaldavam.
Um
dos primeiros projetos de arquitectura que fiz para Vila Real, já no final dos
anos oitenta, o meu cliente, um engenheiro, pediu para eu projectar uma saleta
secundária, onde iriam passar o Inverno com mesa redonda e braseira. Em 1987 na
Escola Diogo Cão era este sistema utilizado na sala de professores, acrescido
de um vidro redondo pousado sobre a camilha, para os professores poderem
escrever e para melhor se higienizar aquela superfície.
Porque
é que o Grande Arquitecto projectou isto tão mal? A vida por semestres de
Primavera e Verão seria muito mais fácil e divertida. Poderíamos atingir o
dobro da nossa idade, mas as rugas avançariam num ritmo mais alongado e todos
os dias acordaríamos cheios de energia, sem pensarmos em luvas, casacos,
ceroulas, cachecóis e gorros. Não gastaríamos tanta energia, as casas seriam
mais confortáveis e arejadas, os dióspiros poderiam ser substituídos por
papaias e o chá, por refrescos. Haveria menos roupas nos roupeiros, diríamos
adeus às botas, às pantufas, mantas, mantinhas e cobertores. As festas
religiosas e pagãs poderiam comemorar-se na mesma, apenas com retoques de
calendário... Neste fim de semana teria ido até à praia recolher um bronze
brutal e na festa do Natal poderia recorrer a um leque e adoptar a modalidade
de piquenique.
Uns
sonharão em sentido contrário. Não faz mal.
Publicado em NVR 15/12/2021
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