01 dezembro, 2021

Faltam profs

 


Faltam profs 

          Com a democratização do ensino em 1974, o regresso das ex-colónias e o progressivo aumento da escolaridade obrigatória foram necessários mais docentes. Um imprevisto criado com a Revolução obrigou a aplicar estratégias de recurso. Entraram para a profissão pessoas com o antigo 7º ano, ou com frequência na faculdade, ou outras instituições que forneciam formação científica mínima e passaram a ser identificados como os professores com habilitação suficiente. Conheço casos caricatos com formação em contabilidade que foram dar português, e conheço casos provenientes da Alliance Française colocados a dar ciências. Injectaram-lhes alguma formação e cada um desenrascou-se como pode. Tudo se tolerou, porque aquele foi um momento excepcional na vida dos portugueses. Horários em mini-concurso eram abundantes e já me estou a localizar na década de 80, quando entrei no sistema como licenciada e com habilitação própria de grau superior. Passou a existir a profissionalização em exercício e em serviço – 2 anos com cadeiras pedagógicas a sério, para enriquecer as licenciaturas na vertente pedagógica. 

          Os ministros sucederam-se, inventaram-se as Escolas Superiores de Educação e a Formação Continua.  Ah, inventaram Bolonha, os mestrados e as respectivas teses de final de curso que continuam a dissecar todos os temas educativos... reinventam-se teorias e estratégias, porque é chato fazer uma tese e não inventar nada, nem que seja mais do mesmo – método científico com roupagens segundo a moda da estação do ano. Inventaram-se as licenciaturas “a martelo” para os professores do 1º ciclo e educadores, inventaram-se professores polivalentes do 1º e 2º ciclos, minimizaram a duração dos estágios pedagógicos, aumentou-se a escolaridade obrigatória até ao secundário, inventou-se o ensino profissional, os Erasmus e agora a inteligência emocional e a filosofia ubuntu. Inventaram-se objectivos, descritores, competências, aprendizagens, rubricas, multiplicaram-se grelhas e reuniões de planificação, articulação, supervisão, inspecção, monitorização e avaliação. Dos vivos, inventaram-se o João de Deus Pinheiro, o Roberto Carneiro, a Carmo Seabra, a Maria de Lurdes, a Isabel Alçada, depois o Crato e agora Tiago Brandão, que se encarregaram ao longo destes anos, em massacrar a paciência e a sapiência dos docentes até à exaustão, com práticas e supostas pedagogias nem sempre assertivas, desgastantes, matando progressivamente o ensino público e privilegiando o ensino privado. Marçal Grilo e David Justino que também tiveram as suas contradições, agora são comentadores, e após tanta complicação, até parecem anjinhos.

          Já sou do tempo do Souto Mayor Cardia e já vi tudo, rapidamente tiro-lhes o azimute. Entre um ministro e outro, não se segue um plano educativo a longo prazo, existem sim, “golpes de estado” sucessivos, seguidos de pequenas revoluções vertidas na Escola, como se diariamente se descobrissem novas maneiras de ensinar conhecimento duradouro e rápido. Nunca se conclui a avaliação destas experiências pedagógicas. E quem paga tudo isto? Os docentes que integrados no Sistema, são obrigados a acolher e pôr em prática todos estes desvarios, com a maior paciência, pensando sempre nos seus alunos. Amou-se a Educação, as Áreas de Projecto eram as pérolas dessa paixão que rapidamente se extinguiu. Novas teorias, novos artifícios têm apenas a mira da economia e não a pedagogia, acreditando sempre que os profs são uns tótós e não entendem estas manobras. Considero até um insulto à clarividência desta classe, a classe profissional mais bem informada de um país.

          Renovou-se o Parque Escolar gastando-se fortunas, sem critério e com diversas derrapagens financeiras, enquanto muitas escolas lutavam para lhes colocarem aquecimento, ou taparem as infiltrações das coberturas, ou retirarem urgentemente o fibrocimento. Inventou-se trabalho para dar aos profs, na componente não letiva, para justificar que esta seria uma profissão igual às outras, porque muitos funcionários públicos se indignavam com os “calaceiros” dos profs que só tinham 22 horas de aulas, e muitas férias, esquecendo-se de que os profs, antes e depois das aulas, têm todos os dias trabalho de casa. Não descansaram enquanto não tentaram tornar igual, o que é desigual.

          Inventaram-se os magalhães... nem comento! 

          Os pais descobriram que os filhos estando na escola o dia todo, lhes facilita a vida, porque o mundo laboral, quanto mais informatizado, mais exigente se torna e nunca mais se reduzem os horários de trabalho, nesta euforia neo-liberal. Os profs e assistentes operacionais passaram a ter muitas valências para tentar ocupar o “buraco” familiar – fazem de animadores culturais, enfermeiros, conselheiros, assistentes sociais, psicólogos, tutores, vigilantes, amigos, parentes e até dão colinho.

          Inventou-se a avaliação na folha de excell e desaprendeu-se sobre a avaliação continua, progressiva e sistemática, apesar de estar na lei, já ninguém sabe o que significa. Os pais avançaram para dentro da Escola, eliminaram-se as gestões democráticas e inventaram-se os diretores e para economizar dinheiro, começou a dar-se destaque à articulação vertical, para melhor entrar a “bucha” dos agrupamentos – monstros despersonalizados em estado calamitoso.

          Há muitos anos, qualquer aluno avaliado entre 0 a 20, percebia que se tivesse 9 poderia chumbar. Assim, teria que se aplicar mais. Agora a folha de excell deve ter diversos registos, que numa escala de 0 a 100,  depois de muito ponderado e evidenciado,  resulta na avaliação do aluno, imediatamente acompanhada de planos de recuperação, tutorias, consulta no psicólogo, caso haja insucesso.  

          Ando nisto há 40 anos e dói-me a paciência. Estamos a formar indivíduos superprotegidos – não se pode usar tesoura de bicos, não se pode fazer picotagem, não se pode falar na fogueira da Santa Inquisição, não se pode falar da guerra colonial. Obviamente não temos censura, mas não podemos assustar as criancinhas, nem traumatizá-las, porém, em casa podem jogar vídeo-jogos cheios de violência. As suas vidas devem ser completamente kleens, sem recusas, sem contrariedades, sem risco, sem frustrações, sem doença, sem morte e sem desejos. Estamos a criar gerações de jovens amorfos e desumanizados, que só querem estar metidos no quarto conectados com o jogo da moda e gritando por vezes, “Roubaram os nossos sonhos”.

          Os profs tentam contrariar esta tendência, mas já estão cansados, com tanto trabalho inócuo e solicitações diárias para tudo e coisa nenhuma.

          Actualmente as instituições e empresas descobrem a Escola como filão publicitário, promovendo concursos, webinares, conferências, seminários e workshops, que contribuem bastante para o estado de saturação dos docentes. Estes, coitados, tiveram apenas duas vezes a sua profissão dignificada (gostem ou não, foi assim) – a primeira com Vasco Gonçalves que atualizou salários e com Guterres que transbordava amor, mas sempre um amor empedernido e canastrão. A opinião pública, manifesta-se contra toda uma classe, como se esta fosse responsável pelo Sistema e, porque às vezes têm a ousadia de lutar pelos seus direitos fazendo greve, com os sindicatos à frente e sempre zurzindo se as greves são à sexta-feira ou à segunda, manifestando uma grande iliteracia laboral, quando defendem que deveriam ser avisados ou, porque é uma pouca-vergonha uma classe de “milionários”, “incompetentes” e “calaceiros” lutarem por direitos. Comparar salários com o resto dos países europeus, não lhes interessa, queimar pestanas, também não e educar os filhos em casa para que usufruam de todo o conhecimento que a Escola lhes pode proporcionar, também dá muito trabalho.

          Faltam profs... atirem a vossa revolta contra a Maria de Lurdes, o Crato e o Tiago Brandão. Acham que alguém no seu juízo perfeito, vai querer desempenhar uma profissão nómada, mal paga e sem subsídio de risco (em qualquer momento podem levar um bufardo de um aluno ou dos pais), que é maltratada pela sociedade e pelos petizes que ouvem em casa, “o teu professor é um baldas”?   

          Faltam professores? Que novidade! Tanto racionalizaram e tanto apertaram o cinto... Porque, na verdade, quem manda na Educação é o Ministro das Finanças. Os últimos ministros esquecem-se, ou julgam-se esquecidos por nós que já estamos fartinhos desta comédia? E alguém acredita que alguns profs voltam ao Sistema? Aguardam-se futuros romances melodramáticos sobre a conclusão da municipalização e a contratação de profs por escola.

Publicado em NVR 01/11/2021

4 comentários:

Ana André disse...

Excelente texto!É bom que as pessoas saibam, de facto, as verdadeiras razões da falta de professores! Este texto toca e dói, porque nos revemos nele! Parabéns!

Anabela Acha disse...

Excelente artigo. Objetivo como só tu sabes fazer. Obrigada pela reflexão e partilha !!!

Emília Raposo disse...

Assim tem vindo a ser a educação. Sou professora por paixão, mas o fardo está cada vez mais pesado!
Parabéns pelo magnífico texto!

fernando disse...

bRAVO, está aqui tudo