Como vais Jacinto?
Numa sala de jantar organizada
segundo a tradição, onde tudo deveria estar no sítio certo, reinava o silêncio
modorrento de uma tarde soalheira, matizada pelos tons quentes da decoração,
mistura cromática queirosiana, feita de cortinas e tapetes carmim, com os raios
de luz projectados através das janelas que davam para o jardim da entrada.
De franja, com duas trancinhas e
de soquetes brancos, eu e o meu pai, de mão na mão, aguardávamos o senhor
doutor.
Aguardávamos em silêncio, estávamos
numa casa de saúde, onde o barulho não era permitido e todos caminhavam com pés
de veludo. O silêncio era enriquecido pela localização dessa grande casa,
mistura de casa de quinta e clínica, na periferia da cidade de Vila Real. O
barulho urbano mais persistente, que eventualmente chegava até lá, seria resultante
do motor de algum carro de aluguer, conhecido como carro de praça, que
transportando alguém necessitado de cuidados médicos, na falta de um hospital
decente e público, percorria o estreito caminho de acesso e finalmente
estacionava no jardim, dando seguimento à sinfonia do silêncio reinante, que se
estendia até ao rio Corgo.
Ouvia-se o nosso respirar
recortado de forma regular pelo pêndulo obediente do relógio de sala. O tic,
tac, tic, tac, tic...,
ia
embalando a minha consciência, desconfigurando o tempo, deformando a noção dos
minutos que passavam, mas oferecendo-me um grande aconchego hipnótico, que
perdurou até hoje na minha memória.
Antes de conhecer o Dr. Otílio,
foi-me apresentado o seu auto-retrato, localizado numa das paredes dessa sala, entre
aparadores e vitrines. Com três anos de idade, achei o seu retrato, quase à
escala natural, uma pintura gigante. A figura do médico, de bata branca,
acompanhada pelos inseparáveis bigodes e cabeleira, indomáveis, era maior do
que todas as representações pictóricas que eu tinha conhecido durante a minha
curta existência. Aproximei-me, pus a minha mão de petiza, admirei cada
pormenor. Achei o doutor simpático, mas escondi a minha chupeta cor-de-rosa,
como medida de precaução — diziam-me que os senhores de bigode não gostavam de
chupetas, na esperança de eu ir largando esse vício infantil.
Continuei a observar a tela, as
pinceladas, as texturas,… mas eu tinha
que olhar para cima e não chegava com a mão ao seu rosto.
O meu pai pegou-me ao colo. Dei-lhe
a chupeta para guardar no bolso, pois achava que seria mais seguro ser o meu
pai a guardar o objecto de tão preciosa dependência, já que ao colo estaria ao
nível dos bigodes do doutor — não fosse acontecer alguma surpresa com esse
pedaço de parede que tinha bigodes e que era tão semelhante à realidade.
Tic, tac,... tic, tac,... tic,...
—
Não mexas no retrato! O senhor doutor foi quem pintou o seu próprio retrato —
disse o meu pai. — Ele pinta muito bem, podes olhar, mas não deves mexer.
— Mas ele é médico, trata os
“dói-dóis”!? — surpreendi-me, não conseguindo conciliar, no meu raciocínio
infantil, estetoscópios, pincéis e tintas. A bata branca deveria ter alguma
utilidade: eu veria as minhas irmãs a usar bata no colégio, mas isso seria uns
meses mais tarde.
Usava a bata branca porquê? Como é
que ele pintava e olhava para ele mesmo? Ignorava os truques dos adultos na
reflexão das imagens através de um espelho. O meu pensamento tinha dificuldade
em gerir toda esta informação com a preguiça e sonolência inconscientemente
resultantes da combinação infalível do calor, ao compasso do tempo emitido pelo
relógio de sala e do aconchego do colo confortável do meu pai.
Talvez tenha adormecido, ou a
memória engoliu o tempo e as imagens da restante espera, misturando-os com
outras esperas na mesma sala, ocorridas noutros dias e com outros propósitos.
Não sei...
— O Otílio já vem aí! Então
pequenita, queres um rebuçado? — perguntava-me uma simpática senhora de cabelo
armado e bem penteado, que sorria para mim e que tinha ido avisá-lo da nossa
presença.
— Não obrigado, ela não quer
— agradeceu o meu pai.
— Quero, quero pois! — opus
eu, manifestando uma total ausência de cerimónia perante a família que acabava
de conhecer, deixando o meu pai desarmado, perante essa desobediência
descarada.
Passaram-me os rebuçados.
— Agradece. Diz: obrigada prima
Estela — ensinou-me o meu pai.
Entretanto uma figura quase
silenciosa assomou à ombreira da porta de mãos cruzadas atrás das costas. Os
meus olhos curiosos fixaram-se imediatamente nos seus bigodes. Sob estes,
emergia um sorriso afável, franco e quase do tamanho do mundo. Os seus cabelos
eram revoltos, mas belos.
— Como vais Jacinto?
Abraçaram-se os dois, num abraço
de reencontro de dois continentes, feito de algumas cumplicidades, que se
repetiu muitas outras vezes, encerrando histórias antigas, vivências comuns,
ideais de liberdade partilhados e outros assuntos, nessa época, vedados ao
mundo das crianças.
Dois homens com dois destinos,
cujos caminhos se cruzaram diversas vezes. Ambos sérios, íntegros,
inteligentes, bonitos e amantes da liberdade. Um licenciou-se em medicina e estudou
no conservatório de música, o outro apenas frequentou a 4ª classe e tocava, de
ouvido, uma gaita-de-beiços e um violão. Um teve infância e adolescência, o
outro passou directamente da infância para a idade adulta, porque ficou cedo
sem o pai — as diferenças do dinheiro, no tempo em que, quanto mais ignorante,
melhor. Apenas a resiliência era qualidade que fazia vencer.
Anos mais tarde descobri que se
tratava de uma pintura de autoria de Heitor Cramez, e não um auto-retrato, mas
as emoções não se alteraram.
In ”Ensaios de escrita: um projecto sempre adiado”, Anabela Quelhas (homenagem ao escritor, médico, músico, caricaturista e pintor Dr. Otílo Figueiredo) 19/09/2009
5 comentários:
5 estrelas
Ana, que texto delicioso! Pq não escreves mais vezes? Ou antes porque não nos deixas ler o que escreves?
bbbbbbbbbbbj
Que pena não ter conhecido essa referencia de Abril.
Oh, Fascinante Amiga:
"...O meu pensamento tinha dificuldade em gerir toda esta informação com a preguiça e sonolência inconscientemente resultante da combinação infalível do calor, o compasso do tempo emitido pelo relógio de sala, e o colo confortável do meu pai.
Talvez tenha adormecido, ou a memória engoliu o tempo e as imagens da restante espera, misturando-os com outras esperas na mesma sala, ocorridas noutros dias e com outros propósitos. Não sei..."
Um soberbo e delicioso texto poético que enternece e maravilha.
Fabuloso.
Também eu conheci o Sr. Dr. Otílio e esta Clínica.
Os meus mais sinceros parabéns por tanta pureza e beleza...
Majestoso. Pleno. Que preenche e deslumbra.
E, não sabias tu escrever...memórias...?
És simplesmente, BRILHANTE! Cintila a tua fantástica escrita divinal. Digo, Celestial.
Beijinhos amigos.
Com forte estima e respeito.
Sempre a ler-te atentamente...
pena
Adorei!
Espero que cries mais belos instantes como este.
Extraordinário, amiguinha linda!
Fabulosa.
nao acredito que o avô tivesse dito "não obrigado, ela não quer"...
bjinhos
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