[Regresso ao NVR]
DE TEORIAS ANDA O
MUNDO CHEIO
Li um artigo de uma
revista semanal que referia como título e em destaque, que as crianças do 2.º
ano têm dificuldades em fazer sínteses de textos. Parece escandaloso? mas não
é. Depois, lendo todo o artigo verifiquei que se referiam às provas de aferição
do ensino básico.
O que se destacava no
título tencionava provocar indignação no leitor, para descredibilizar o ensino
público… (já lhes começa a faltar imaginação).
- Ora vejam lá, uma criancinha
do 2.º ano tem dificuldades em fazer sínteses! A Escola Pública vai de mal a
pior!!!
… a mim, não me
preocupa absolutamente nada. Preocupa-me muito mais, este treino para a aferição
e a competição desde a infância. Preocupa-me que os pais queiram que os filhos
entrem cada vez mais cedo para a escola, não entendendo que o desenvolvimento
cognitivo da criança faz-se de forma natural e nada adianta apressá-lo.
As crianças precisam de
brincar. Lamento que as provas de aferição esqueçam a parte mais importante do
desenvolvimento da criança. Sabem saltar à corda? Sabem descascar uma batata?
Sabem assobiar ou cantar? Sabem dividir uma laranja? Sabem dançar? Sabem lavar
a loiça? Sabem pregar um botão? Desenham regularmente? Sabem saltar ao eixo? Sabem
brincar às escondidas? Sabem fazer a “cama do gato”? Sabem estar às escuras? Sabem
subir às árvores? Alguma vez brincaram com um cão? Sabem exteriorizar emoções?
Sabem ir para a escola sozinhas? Sabem orientar-se no seu bairro? Sabem
respeitar os outros? Conhecem os códigos do saber estar com os outros? Têm boa
caligrafia?
As provas de aferição,
o que dizem sobre isto?
Tenho alunos no 3.º
ciclo que não sabem picotar, nem recortar, porque coitadinhos, nem uma tesoura
de pontas podem usar “por estar em causa a sua segurança”. Utilizar um X-ato é
impensável, os papás entrariam em pânico. Experimentem comprar uma tesoura no
supermercado, e verão que todas as tesouras, são arredondadas e mixurucas, não
cumprindo a sua função.
No 2.º ano já é um
sucesso se os alunos souberem ler. Fazer sínteses é outro assunto muito mais
complexo, exige raciocínio abstracto, que nem todos desenvolvem na infância, e
alguns nem na adolescência, mesmo tendo professores muito aplicados e exigentes,
porque as crianças não são todas iguais. Certamente saberão outras coisas.
Estes profissionais que
tratam das aferições e, já agora, jornalistas, deveriam ter mais formação nas
áreas das neurociências, para perceberem a plasticidade cerebral na educação
escolar, o que se pode ou não exigir. A aprendizagem não se dá por artes
mágicas. Antigamente era tudo muito fácil, havia os alunos burros e os alunos
inteligentes, depois, pelas competências desenvolvidas ao longo da vida,
percebia-se que não era bem assim, mas ninguém sabia explicar. Hoje, os estudos
realizados nas neurociências podem finalmente fornecer alguma orientação sobre
aprendizagem, memória, plasticidade de pensamento, atenção, percepção, emoção e
outras.
Eu quero é que eles
sejam felizes, educados, curiosos, que aprendam a lidar com o “não”, entendam
que existe uma hierarquia familiar e a respeitem, que sejam solidários e que
brinquem. O resto virá depois.
A Escola não é uma
fábrica com linhas de produção em série, onde as check list, monitorizações
e controle de qualidade, são essenciais, para prever a tendência de uma mais-valia
final, que se traduzirá em lucro na produção, com produtos capazes de competir
no mundo selvagem do consumo.
As provas de aferição
servem apenas para avaliar e culpar professores, virar pais contra professores
e indicar como saída o ensino privado (entendido como o paraíso da
aprendizagem), para onde vão as crianças das classes média e alta, como se a
mensalidade se traduzisse em raciocínio abstracto! Comparam o incomparável.
Aferir o quê? Os professores não conhecem as dificuldades dos seus alunos? Os
professores o que vão fazer com os resultados das aferições? Vão ser mais
exigentes? Vão massacrar as crianças com mais tempo de aulas? Vão ao psiquiatra
para lhes ensinar a viver com a sua frustração profissional? Se calhar, para terem maior poder de síntese,
têm que saltar mais à corda… Liguem o conhecimento das neurociências com a
aprendizagem e apontem soluções práticas aos professores. Eu escrevi “soluções
práticas”, porque de teorias anda o mundo cheio… por vezes a solução é
paciência para esperar a progressão no caminho de cada criança. Isto sim,
brilhavam!
8/06/2022 publicado em NVR
4 comentários:
Revoltaste, QUE BOM.
Compro sempre o jornal para ler os teus textos.
Adoro os títulos e os temas.
Quando regressa a Anita?
Beijinho
É o tipo de análise que devia ser amplamente divulgada . A importância do brincar desde os primeiros anos e muito em particular o "brincar de rua", como defende Carlos Neto no seu livro "Libertem as crianças - a urgência de brincar e ser ativo".
Excelente texto, Anabela! Concordo plenamente. Mais uma vez, parabéns! As tuas palavras são, de facto, para todos refletirmos!
Como sempre, em cheio 😁😁💖
Enviar um comentário