21 julho, 2021

FUGIR A SALTO

Fugir a salto

O Estado Novo sempre condicionou a emigração, primeiro para evitar a saída de mão-de-obra e mais tarde para impedir a redução do número de soldados, necessários para a guerra nas colónias. Acabou o Estado Novo e a guerra, mas a história de Portugal é uma história feita de partidas e de regressos e eles continuam a partir, por vezes são os próprios governantes que aconselham...

 

              Hoje os mais jovens ignoram completamente o que era isto de ir a salto para outro país. Há dias vi-me na necessidade de explicar isto muito rapidamente a dois alunos.

              O que seria isto de fugir a SALTO?

              A fuga para França na década de 60, devia-se à obrigatoriedade de fazer serviço militar, com grande probabilidade de ir para a guerra nas ex-colónias ou para procurar uma vida melhor.

              Essas fugas denominadas por emigração clandestina ou a “salto” envolveram milhares de portugueses e nem sempre terminaram bem. Assunto proibido até ao 25 de Abril e agora passados quase 60 anos, parece algo surreal para os mais jovens, que nem sabem o que é uma fronteira e muito menos a dificuldade em sair de um país com as “portas fechadas”. Perguntaram-me se iam de avião, de comboio ou de carro e ficaram absolutamente surpresos quando lhes expliquei que iam a pé, por caminhos escondidos para não serem bloqueados pelos guardas fronteiriços. Quem fosse apanhado ia preso e quem fugisse, alvejado. 

              - E eles sabiam o caminho? Iam pelo GPS?

              - Claro que não, seguiam vagas indicações daqueles que já o tinham feito ou daqueles que conheciam os trilhos e forneciam informações se lhe pagassem, os passadores.

              Fugia-se à miséria rural e urbana, fugia-se à probabilidade de morrer na guerra colonial, fugia-se à fome, fugia-se por incapacidade de matar sem saber porquê.

              A maioria era formada por homens, mas também fugiam mulheres e crianças, umas ao colo e outras pelo seu pé, pisando neve e gelo, atravessando rios, enfrentando ventos e tempestades. Muitos eram analfabetos e pouco experientes, desconheciam a língua francesa, tendo muitos problemas de integração e outros eram enganados na travessia da fronteira e de Espanha. Alguns, desapareceram, nunca chegando ao destino, não se sabe quantos. Muitos passaram fome, pouco dormiam e quando dormiam era ao relento, sempre alerta para não serem apanhados. Juntavam 10 ou 20 contos para pagar aos passadores que orientavam o salto da fronteira e não sobrava mais nada.[i] Outros até pediam dinheiro a algum familiar.

              Levavam uma trouxa ou uma pequena mala e caminhavam durante dias ao frio e à chuva, muitos dizem que foram 5 dias, utilizando o comboio, outros 30 dias, outros dizem 45, dependia da sorte e da rota que tomavam, estes últimos sempre a pé.

              Existem relatos impressionantes.

              - Fomos numa carrinha, escondidos atrás de fardos de palha, dormíamos em palheiros agrícolas, só andávamos de noite... demorámos 12 dias a chegar a Paris

              - Eu fui com os meus pais, tinha seis anos, o meu pai levava a minha irmã de dois anos ao colo e a minha mãe levava o meu irmão na barriga. Ainda hoje sinto a água gelada a travessar o rio, e depois ficar com as botas e as meias molhadas. A minha mãe chorava, queria voltar.

              - Atiraram sobre nós, em Portugal governava o Salazar e em Espanha governava o Franco, ninguém podia sair, porém, conseguimos passar para o lado da França e aí fomos ajudados pelos franceses.

              Há pessoas que foram detidas em Espanha e entregues à polícia portuguesa.

              Por vezes a humildade e a vergonha impedem que estas estórias sejam públicas. Preferem recordar o sucesso em vez das dificuldades, esquecendo-se de que os seus testemunhos de heróis resilientes são necessários para informar e esclarecer as novas gerações, que pensam que tudo se resolve de carro, de avião e de uber, com vouchers comprados na web.

              Deixar tudo para trás e ir ao desconhecido para salvar os que ficaram, converte-os em heróis ensinando-nos a ser menos críticos e mais solidários em relação aos refugiados que apenas tentam sobreviver.



[i] Naquela época ganhava-se 7 escudos por um dia de trabalho.

Publicado em NVR em 21/07/2021

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