Fugir a salto
O Estado Novo sempre
condicionou a emigração, primeiro para evitar a saída de mão-de-obra e mais
tarde para impedir a redução do número de soldados, necessários para a guerra
nas colónias. Acabou o Estado Novo e a guerra, mas a história de Portugal é uma
história feita de partidas e de regressos e eles continuam a partir, por vezes
são os próprios governantes que aconselham...
Hoje
os mais jovens ignoram completamente o que era isto de ir a salto para outro
país. Há dias vi-me na necessidade de explicar isto muito rapidamente a dois
alunos.
O
que seria isto de fugir a SALTO?
A
fuga para França na década de 60, devia-se à obrigatoriedade de fazer serviço
militar, com grande probabilidade de ir para a guerra nas ex-colónias ou para
procurar uma vida melhor.
Essas
fugas denominadas por emigração clandestina ou a “salto” envolveram milhares de
portugueses e nem sempre terminaram bem. Assunto proibido até ao 25 de Abril e
agora passados quase 60 anos, parece algo surreal para os mais jovens, que nem
sabem o que é uma fronteira e muito menos a dificuldade em sair de um país com
as “portas fechadas”. Perguntaram-me se iam de avião, de comboio ou de carro e
ficaram absolutamente surpresos quando lhes expliquei que iam a pé, por
caminhos escondidos para não serem bloqueados pelos guardas fronteiriços. Quem
fosse apanhado ia preso e quem fugisse, alvejado.
-
E eles sabiam o caminho? Iam pelo GPS?
- Claro que não, seguiam vagas indicações daqueles que
já o tinham feito ou daqueles que conheciam os trilhos e forneciam informações
se lhe pagassem, os passadores.
Fugia-se
à miséria rural e urbana, fugia-se à probabilidade de morrer na guerra
colonial, fugia-se à fome, fugia-se por incapacidade de matar sem saber porquê.
A
maioria era formada por homens, mas também fugiam mulheres e crianças, umas ao
colo e outras pelo seu pé, pisando neve e gelo, atravessando rios, enfrentando
ventos e tempestades. Muitos eram analfabetos e pouco experientes, desconheciam
a língua francesa, tendo muitos problemas de integração e outros eram enganados
na travessia da fronteira e de Espanha. Alguns, desapareceram, nunca chegando
ao destino, não se sabe quantos. Muitos passaram fome, pouco dormiam e quando
dormiam era ao relento, sempre alerta para não serem apanhados. Juntavam 10 ou
20 contos para pagar aos passadores que orientavam o salto da fronteira e não
sobrava mais nada.[i] Outros
até pediam dinheiro a algum familiar.
Levavam
uma trouxa ou uma pequena mala e caminhavam durante dias ao frio e à chuva,
muitos dizem que foram 5 dias, utilizando o comboio, outros 30 dias, outros
dizem 45, dependia da sorte e da rota que tomavam, estes últimos sempre a pé.
Existem
relatos impressionantes.
-
Fomos numa carrinha, escondidos atrás de fardos de palha, dormíamos em
palheiros agrícolas, só andávamos de noite... demorámos 12 dias a chegar a
Paris
- Eu fui com os meus pais, tinha seis anos, o meu pai
levava a minha irmã de dois anos ao colo e a minha mãe levava o meu irmão na
barriga. Ainda hoje sinto a água gelada a travessar o rio, e depois ficar com
as botas e as meias molhadas. A minha mãe chorava, queria voltar.
- Atiraram sobre nós, em Portugal governava o Salazar e
em Espanha governava o Franco, ninguém podia sair, porém, conseguimos passar
para o lado da França e aí fomos ajudados pelos franceses.
Há
pessoas que foram detidas em Espanha e entregues à polícia portuguesa.
Por
vezes a humildade e a vergonha impedem que estas estórias sejam públicas.
Preferem recordar o sucesso em vez das dificuldades, esquecendo-se de que os seus
testemunhos de heróis resilientes são necessários para informar e esclarecer as
novas gerações, que pensam que tudo se resolve de carro, de avião e de uber,
com vouchers comprados na web.
Deixar
tudo para trás e ir ao desconhecido para salvar os que ficaram, converte-os em
heróis ensinando-nos a ser menos críticos e mais solidários em relação aos
refugiados que apenas tentam sobreviver.
Publicado em NVR em 21/07/2021
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