20 maio, 2021

LIVROS

 

LIVROS         

            Ainda não sabia ler e já via a História da Carochinha, num livro de tecido da Majora Editora e como tinha imagens, as letras sempre se posicionavam direitas. Foi assim que os livros começaram a fazer parte da minha vida.

            Entrei para o mundo da leitura através da ilustração, fui devoradora dos livros de banda desenhada, naquela época em que diziam que a banda desenhada escrita em brasileiro não era aconselhada, porque passaríamos a escrever mal o português. Como naquela época eu falava Lusumbundu ou Angolês, não foi um factor determinante na minha formação.  Fui fã do casal Maga Patalógica / Mancha Negra, do Peninha e do Biquinho e obviamente do Super-Homem.

            O livro sempre foi uma companhia e um cúmplice do meu relaxamento.  Tenho a mania de ler em vários lugares e sempre que viajo, preocupo-me com o que quero ler, para colocar de imediato, o livro na mala, evitando esquecimento de última hora. Nunca consegui adormecer sem ser aconchegada entre as palavras escritas, que formam a ante-câmara dos braços de Morfeu. E confesso, sou daquelas que fico a segurar o livro após adormecer até as minhas tendinites reclamarem. Também dobro as folhas no canto superior. Que escândalo! é verdade. Sou uma leitora desorganizada que nem sempre tem um marcador de livro junto de si.

            Tive uma fase de deslumbramento, quando na entrada na idade adulta descobri a escrita de Simone de Beauvoir e do surrealista de Boris Vian, aquilo era outro nível! Éramos 3 amigos, que em qualquer lado, nos sentávamos a ler e depois passávamos horas a trocar opiniões sobre o que liamos, construindo uma leitura mais reflexiva.

            Pertenço àquele grupo um pouco “disléxico” que quando pega pela primeira vez num livro, o abre no fim e começa a folhear do fim para o princípio. Assino com o livro na horizontal e por vezes escrevo a data em que terminei a leitura, na última página.

            Tenho uma amiga que escrevinha tudo o que lê e já me disse, que antes de morrer, quer destruir todos os seus livros devido à escrita paralela e comentada, que certamente revelará muito de si.

            Raramente escrevo nas margens dos livros, recentemente sublinho algumas frases quando as palavras se harmonizam de forma poética e criativa; curiosamente são sempre autores portugueses. A propósito, na poesia, só leio autores lusófonos. Só as palavras portuguesas me emocionam.

            Gosto de cheirar um livro novo, mas confesso que já não o faço, num livro já lido por outra pessoa, imaginando a pegada de outro leitor, entre linhas, alterando o odor original. Detesto quem molha o dedo com saliva para folhear. Não gosto de ler um livro duas vezes, para mim, a leitura deve progredir para um final desconhecido. Também não gosto de badanas... são manias.

            Não gosto de livros de autores orientais, porque tenho imensa dificuldade em memorizar os nomes das personagens.

            Conforme avanço na idade, começo a apreciar um livro com letras maiores!!! Letras gordas, como dizem, não cansam a vista.      

            Tenho livros especiais – o de tecido, os sensoriais, o de braille, o livro objecto, o livro musical, o livro das letras 3D, o livro espelho, o livro xadrez, o livro reflexos, o livro do tempo, os pop up books, os string books, e flipbooks (lamento vão informar-se na web), o livro das horas, o livro quadro, os livros sem bonecos, os livros de ilustração cientifica, os livros de arquitectura, os livros de fotografia, os livros de animais, os de humor, os livros de filosofia... tenho um livro com as dimensões de 4X4X4 sobre o Mar e tenho um, ainda mais minúsculo, um mini dicionário de Francês-Português. Depois tenho todos os livros do Lobo Antunes e do Jorge Amado... porque sim!  e um diário com poucas folhas escritas, que parece um livro secreto com chave e aloquete.

            O aspecto gráfico do livro é muito importante. Tenho um livro que é uma obra de arte das artes gráficas. Não é propriamente um livro... é o catálogo da exposição “Fernando Pessoa - Plural como o Universo", que ocorreu na Fundação Calouste Gulbenkian em 2012. É um prazer apreciar a composição gráfica de cada página.

            Gosto de livros em papel mate. E gosto de livros assinados pelo autor. A mais bonita assinatura que tenho, pertence a Ondjaki, que assinou desenhando uma flor, tão feminina e tão carinhosamente dedicada a mim.

            Quando era criança, tinha os livros para colorir, há alguns anos criaram os moleskines, tão bonitinhos.

            Já escrevi um livro e já ensinei a fazer um livro gigante, onde cada folha era um lençol, permitindo às crianças deitarem-se dentro dele.

            Os livros para além de servirem para ler podem ter outras utilidades. Quando um livro já não nos interessa, ou já está ultrapassado, podemos reutilizá-lo como um volume objecto. Há dias a perna de uma cama partiu, e a enciclopédia britânica deu-me muito jeito para calçar a cama enquanto o carpinteiro não a veio restaurar. As páginas amarelas, dão para fazer cartuxos para as castanhas assadas no S. Martinho e para fazer verdadeiras esculturas com aproveitamento do livro aberto ou para fazer art quilling. Lembro-me de uma peixeira que vendia sardinhas e embrulhava-as nas ditas páginas com números de telefone.

            Há livros amaldiçoados – não descansei enquanto não li o livro de São Cipriano, passando rapidamente da expectativa juvenil à decepção. Antigamente havia livros proibidos, porque poderiam pôr em causa o regime político – convinha manter um povo ignorante e adormecido.

            Maio costumava ser o mês da feira do livro. Quando vivia no Porto aguardava com muita ansiedade esta feira, localizada no Palácio de Cristal, na Boavista ou nos Aliados. Passava por lá várias vezes, o dinheiro não abundava e escolhia criteriosamente o que comprava e lia compulsivamente. Até forrava as capas com plástico. Hoje compro livros ao longo do ano, e vão ficando em fila de espera até surgir a oportunidade da leitura.

            Há dias li “O vício dos livros” de Afonso Cruz, onde refere que Gabriela Cabal, pensa que os livros afastam a morte, ou seja, se estivermos a ler, a morte entretém-se a ver o que estamos a ler e distrai-se. Estou com sorte porque tenho sempre livros a meio, cuja conclusão vai sendo adiada Segundo esta teoria isso irá favorecer a minha longevidade. Lendo, vivemos mais do que uma vez, porque vivemos a vida descrita de cada personagem.

            Como trabalho numa biblioteca já encontrei várias coisas no interior dos livros – lembretes, poemas de amor, amores-perfeitos e papoilas meio secos, uma fita azul bebé, uma folha dobrada da publicidade de um supermercado, o recibo de compra, um cartão de cidadão, um desenho infantil...

            Um livro nunca se empresta, porque normalmente há dificuldades de retorno. Prefiro dar, do que emprestar. Odeio perceber que me falta um livro, e já nem sei a quem emprestei. Gosto que me ofereçam cheques para adquirir livros.

            Aprecio filas duplas de livros em estantes. O reencontro é sempre agradável. Tenho livros organizados por alturas, por épocas, por assuntos, por autores e finalmente livros desorganizados... daqui se conclui que os meus livros habitam o caos. Depois tenho os livros em PDF, uns legais outros clandestinos, recolhidos na ilusão que iria aliviar a minha bagagem nas férias... só teria que levar o tablet... descobrir que enjoo a ler num tablet, e não me consigo aconchegar às palavras digitais – inquieta-me que o tablet possa escorregar das minhas mãos e partir as palavras.

Publicados em NVR 19/05/2021


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