LIVROS
Ainda
não sabia ler e já via a História da Carochinha, num livro de tecido da Majora
Editora e como tinha imagens, as letras sempre se posicionavam direitas. Foi
assim que os livros começaram a fazer parte da minha vida.
Entrei
para o mundo da leitura através da ilustração, fui devoradora dos livros de
banda desenhada, naquela época em que diziam que a banda desenhada escrita em
brasileiro não era aconselhada, porque passaríamos a escrever mal o português.
Como naquela época eu falava Lusumbundu ou Angolês, não foi um factor
determinante na minha formação. Fui fã
do casal Maga Patalógica / Mancha Negra, do Peninha e do Biquinho e obviamente
do Super-Homem.
O
livro sempre foi uma companhia e um cúmplice do meu relaxamento. Tenho a mania de ler em vários lugares e
sempre que viajo, preocupo-me com o que quero ler, para colocar de imediato, o
livro na mala, evitando esquecimento de última hora. Nunca consegui adormecer
sem ser aconchegada entre as palavras escritas, que formam a ante-câmara dos braços
de Morfeu. E confesso, sou daquelas que fico a segurar o livro após adormecer
até as minhas tendinites reclamarem. Também dobro as folhas no canto superior.
Que escândalo! é verdade. Sou uma leitora desorganizada que nem sempre tem um marcador
de livro junto de si.
Tive
uma fase de deslumbramento, quando na entrada na idade adulta descobri a
escrita de Simone de Beauvoir e do surrealista de Boris Vian, aquilo era outro
nível! Éramos 3 amigos, que em qualquer lado, nos sentávamos a ler e depois
passávamos horas a trocar opiniões sobre o que liamos, construindo uma leitura
mais reflexiva.
Pertenço
àquele grupo um pouco “disléxico” que quando pega pela primeira vez num livro,
o abre no fim e começa a folhear do fim para o princípio. Assino com o livro na
horizontal e por vezes escrevo a data em que terminei a leitura, na última página.
Tenho
uma amiga que escrevinha tudo o que lê e já me disse, que antes de morrer, quer
destruir todos os seus livros devido à escrita paralela e comentada, que certamente
revelará muito de si.
Raramente
escrevo nas margens dos livros, recentemente sublinho algumas frases quando as
palavras se harmonizam de forma poética e criativa; curiosamente são sempre autores
portugueses. A propósito, na poesia, só leio autores lusófonos. Só as palavras portuguesas
me emocionam.
Gosto
de cheirar um livro novo, mas confesso que já não o faço, num livro já lido por
outra pessoa, imaginando a pegada de outro leitor, entre linhas, alterando o odor
original. Detesto quem molha o dedo com saliva para folhear. Não gosto de ler
um livro duas vezes, para mim, a leitura deve progredir para um final
desconhecido. Também não gosto de badanas... são manias.
Não
gosto de livros de autores orientais, porque tenho imensa dificuldade em
memorizar os nomes das personagens.
Conforme
avanço na idade, começo a apreciar um livro com letras maiores!!! Letras
gordas, como dizem, não cansam a vista.
Tenho
livros especiais – o de tecido, os sensoriais, o de braille, o livro objecto, o
livro musical, o livro das letras 3D, o livro espelho, o livro xadrez, o livro
reflexos, o livro do tempo, os pop up books, os string books, e flipbooks
(lamento vão informar-se na web), o livro das horas, o livro quadro, os
livros sem bonecos, os livros de ilustração cientifica, os livros de
arquitectura, os livros de fotografia, os livros de animais, os de humor, os
livros de filosofia... tenho um livro com as dimensões de 4X4X4 sobre o Mar e
tenho um, ainda mais minúsculo, um mini dicionário de Francês-Português. Depois
tenho todos os livros do Lobo Antunes e do Jorge Amado... porque sim! e um diário com poucas folhas escritas, que
parece um livro secreto com chave e aloquete.
O
aspecto gráfico do livro é muito importante. Tenho um livro que é uma obra de
arte das artes gráficas. Não é propriamente um livro... é o catálogo da
exposição “Fernando Pessoa - Plural como o Universo", que ocorreu na Fundação
Calouste Gulbenkian em 2012. É um prazer apreciar a composição gráfica de cada
página.
Gosto
de livros em papel mate. E gosto de livros assinados pelo autor. A mais bonita
assinatura que tenho, pertence a Ondjaki, que assinou desenhando uma flor, tão
feminina e tão carinhosamente dedicada a mim.
Quando
era criança, tinha os livros para colorir, há alguns anos criaram os moleskines,
tão bonitinhos.
Já
escrevi um livro e já ensinei a fazer um livro gigante, onde cada folha era um
lençol, permitindo às crianças deitarem-se dentro dele.
Os
livros para além de servirem para ler podem ter outras utilidades. Quando um
livro já não nos interessa, ou já está ultrapassado, podemos reutilizá-lo como
um volume objecto. Há dias a perna de uma cama partiu, e a enciclopédia britânica
deu-me muito jeito para calçar a cama enquanto o carpinteiro não a veio
restaurar. As páginas amarelas, dão para fazer cartuxos para as castanhas
assadas no S. Martinho e para fazer verdadeiras esculturas com aproveitamento
do livro aberto ou para fazer art quilling. Lembro-me de uma peixeira que
vendia sardinhas e embrulhava-as nas ditas páginas com números de telefone.
Há
livros amaldiçoados – não descansei enquanto não li o livro de São Cipriano, passando
rapidamente da expectativa juvenil à decepção. Antigamente havia livros
proibidos, porque poderiam pôr em causa o regime político – convinha manter um
povo ignorante e adormecido.
Maio
costumava ser o mês da feira do livro. Quando vivia no Porto aguardava com
muita ansiedade esta feira, localizada no Palácio de Cristal, na Boavista ou
nos Aliados. Passava por lá várias vezes, o dinheiro não abundava e escolhia
criteriosamente o que comprava e lia compulsivamente. Até forrava as capas com
plástico. Hoje compro livros ao longo do ano, e vão ficando em fila de espera
até surgir a oportunidade da leitura.
Há
dias li “O vício dos livros” de Afonso Cruz, onde refere que Gabriela Cabal, pensa
que os livros afastam a morte, ou seja, se estivermos a ler, a morte entretém-se
a ver o que estamos a ler e distrai-se. Estou com sorte porque tenho sempre
livros a meio, cuja conclusão vai sendo adiada Segundo esta teoria isso irá
favorecer a minha longevidade. Lendo, vivemos mais do que uma vez, porque
vivemos a vida descrita de cada personagem.
Como
trabalho numa biblioteca já encontrei várias coisas no interior dos livros –
lembretes, poemas de amor, amores-perfeitos e papoilas meio secos, uma fita
azul bebé, uma folha dobrada da publicidade de um supermercado, o recibo de
compra, um cartão de cidadão, um desenho infantil...
Um
livro nunca se empresta, porque normalmente há dificuldades de retorno. Prefiro
dar, do que emprestar. Odeio perceber que me falta um livro, e já nem sei a
quem emprestei. Gosto que me ofereçam cheques para adquirir livros.
Aprecio
filas duplas de livros em estantes. O reencontro é sempre agradável. Tenho
livros organizados por alturas, por épocas, por assuntos, por autores e
finalmente livros desorganizados... daqui se conclui que os meus livros habitam
o caos. Depois tenho os livros em PDF, uns legais outros clandestinos,
recolhidos na ilusão que iria aliviar a minha bagagem nas férias... só teria
que levar o tablet... descobrir que enjoo a ler num tablet, e não me consigo
aconchegar às palavras digitais – inquieta-me que o tablet possa escorregar das
minhas mãos e partir as palavras.
Publicados em NVR 19/05/2021
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