12 abril, 2020

CONFINAMENTO EM ANÁLISE


Confinamento em análise
                Um mês de resguardo em casa, colaboro minimamente na luta contra a pandemia. Faço a minha parte. Ao fim de um mês e aproveitando a Páscoa em casa, faço análise do meu confinamento.
                Resta-me ficar em casa. Isto não é uma guerra tradicional, mas é a guerra mundial do século XXI. Há mortes na mesma, mas não resultam de bazucas, nem de balas tracejantes, nem de metralha de horas e horas. Ficamos na mesma em casa, mas não nos afastamos das janelas, permanecendo nos compartimentos mais interiores da casa e temos a grande vantagem de podermos estar a par da contabilidade marcial, sempre que ligamos a televisão: X infectados, Y mortos, divididos pela zona norte, centro e sul, com as duas “generalas” a quem já chamam madames Dupont e Dupond, a esclarecer tudo e a desenhar técnicas de defesa do inimigo, com picos e planaltos (ansiamos pela planície, já agora), como se de uma aula de Geografia se tratasse — umas vezes, com álcool, outras com gel, outras com lixívia e sabão; umas vezes sem luvas, outras com elas; umas vezes sem máscaras e outras com elas,… não se entende.
                A minha vida decorre dentro de casa, fazendo percursos entre a sala, cozinha, quarto, hall, marquise e wc, tentando fazer sucessões matemáticas entre estes seis elementos, com variantes de 2 e de 3 e saltando a tijoleira de forma alternada. Cada vez que subo as escadas do prédio imagino-me a subir as escadas da Piazza di Spagna em Roma, e como me sobra tempo, faço-o com o todo o glamour, com luvas, passo leve e costas direitas, sem tocar em nada.
                Por vezes oiço música, por vezes discurso em frente ao espelho, treino visitas guiadas pelos interruptores com toalhete desinfectante, leio vários livros em simultâneo e não faço crochet, porque já não me lembro como se faz.
                Ontem esteve bom tempo e aproveitei a apanhar sol na marquise, mesmo tendo a certeza que, pelo menos um vizinho me olhava através de binóculos, a partir de uma janela. Sobre os meus vizinhos tenho outras certezas também. Apostam se num dia estendo lençóis, pijamas e toalhas a secar ou se penduro soutiens, fios dental, meias e camisolas. Apostam se farei iscas de fígado ou sopa de nabo para o almoço, vão pelo cheiro e tudo é motivo para passar o tempo. Oferecem-me música variada, disputando Quim Barreiros, Emanuel e Nelo Monteiro e há um, mais erudito, que passa Conan Osíris. Além de eles ouvirem, fazem questão que toda a vizinhança oiça e apure a sua cultura musical. Fecho as janelas e penso que ainda não perceberam porquê.
                Como não tenho comigo as criancinhas, tenho algum sossego. Não oiço a toda a hora, mãe faz-me um ovo estrelado, mãe não quero fazer já a cama, mãe, que seca, hoje não me apetece tomar banho, mãe quero pizza e hamburguer, mãe vou lanchar outra vez,… nem tenho que fazer de polícia-sinaleiro (confesso copiei) a comandar os movimentos domésticos, olha que cais, olha que vais bater no móvel, endireita a cadeira, oh pá bicicleta aqui não. Em compensação tenho vários alunos a ligarem-me constantemente, a lotarem a minha caixa de correio electrónico e a quererem fazer vídeo-chamadas como se eu fosse da idade deles. Os seus emails são curiosos: kika, amorzinho, guga, labrego, eusouboi, 567982, agentesecreto, titan, kotamais, kenjinagasaki, katsuma….o que fica difícil associar aos nomes dos alunos. Um deles deve ter a tecla ENTER avariada, cada comunicação repete-a dez vezes seguidas… ou é o ENTER ou é o excesso de zelo da família: oh rapaz já enviaste o trabalho à professora? (pai); Zé, meu filhote, já enviaste?; (mãe) Zéquinha, meu amor, já enviaste?; (avó) Oh monstro já enviaste? (irmã); Meu doce, já enviaste? (tia encalhada); Oh animal, já enviaste? (colega); Marmanjo au, au, já enviaste? (cão); Já enviaste, já enviaste? Crauuu fi (papagaio) e ele vai fazendo ENTER não vá o sistema falhar e depois ter que aturar toda a família. O seguro morreu de velho.
                Fazendo tele-trabalho e reuniões realizadas através de vídeo, percebo o tipo de decoração de cada casa, os quadros inclinados e mal colocados, a desarrumação das estantes, os pechisbeques, as roupas penduradas onde calha, olheiras dos interlocutores, as rugas cada vez mais vincadas, a falta de gel nas unhas, as riscas descoloradas dos cabelos, a barba matizada de vários dias, os cônjuges a passar por trás em roupão e até já ouvi: Oh Manel, acabas com essa merda?! … e a atrapalhação do Manel, a despedir-se da tele-reunião dizendo que estão a tocar a campainha, disfarçando o mau feitio da mulher.
                No hall da entrada tenho um pano com lixívia, para desinfecção dos sapatos e uns chinelos para passar aos outros compartimentos. A credência deixou de ter um arranjo floral e passou a ter desinfectante de mãos, álcool, toalhetes, lista das compras e saco do lixo na parte inferior… aliás, o meu apartamento já não cheira a jasmim e sim a lixívia — não há mosca varejeira que queira entrar! Na cozinha, as frutas alinham-se pela ordem de chegada e todos os cantos e recantos são utilizados para armazenar. No lava-loiças, as esponjas repousam em soluções lixiviadas e passei a criar sprays desinfectantes caseiros, com as dicas da internet.
                As compras ficam em repouso na mala do carro durante 48 horas, até provavelmente o bicharoco morrer sufocado, sei lá.
                A conta da electricidade e da água denunciam o aumento de consumo, tudo se lava a 60 graus e esgotei todas as amostras de hidratante de mãos que fui acumulando com o cartão das farmácias. A saída para levar o lixo equivale àquela viagem que todos gostaríamos de fazer até às Maldivas, só que em vez de mala, levo dois ou três sacos de lixo.
                Não tenho que me preocupar com o que vou vestir e deixei de me maquilhar, apesar dos binóculos do vizinho. “Basicamente” (agora toda gente diz) estou bem, ansiando poder sair, para saber quem vive no 5º direito do prédio de uma outra rua, e que toca trompete às 4h da manhã na varanda, para lhe tocar à campainha todos os dias às 7h, hora de saída para o trabalho. Confesso que já contei os azulejos do quarto de banho e da cozinha, e nos marmoreados, distraio-me a interpretar as manchas de cor, consigo ver em algumas, a delicada princesa Diana e o desbocado general Pinheiro de Azevedo.           
                O desemprego, a falta de alimentos, a violência doméstica, os distúrbios psicológicos, os assaltos, o alcoolismo e outras dependências, os enfartes e as idas tardias à urgência do hospital, para já, andam disfarçados pelas palmas à janela, os concertos entre vizinhos de bairro, as actuações dos famosos em #ficodentro, as anedotas COVID e pela imaginação fértil de cada um. Veremos o que vem aí! E pronto não falei de política.
12/04/2020 DIA DE PÁSCOAI
Anabela Quelhas

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