O cuspe – certificado de garantia
A caldeira de aquecimento aqui de
casa começou a fanicar há uns dias e percebi que a sua revisão estava com um
ano de atraso. Telefonei para o número que consta no auto-colante posicionado
na lateral do aparelho, onde está escrito
- EMERGÊNCIA.
….
Estou exausta!
Acabo de assistir a uma formação
intensiva sobre caldeiras a gasóleo e penso que estarei preparada para me
candidatar a uma certificação qualquer. Agora
estou, tu cá, tu lá, com turbinas, bombas, resíduos, rendimento, segurança, “bábulas”,
membranas, pressão, “Bares” (não bares de shots, mas Bars), manómetros, técnica
do cuspe e da bába, temperatura, torneiras de corte, ignição, queimador, “anormalias”,
aparelho de regulação, corrosão, “sedimeintos” ... após duas horas e meia a
tratar da revisão de uma Lamborguini. A minha Lamborguini! não tenho o meu
automóvel preferido, mas tenho uma parente afastada. Já é alguma coisa. Não tem
o design do Lamborghini Gallardo, mas pronto! para o paralelepípedo, não está
mal.
Passo por várias fases:
1 – Chega o técnico
que conheço, acompanhado de um jovem e inicio-me com a expectativa que será coisa
rápida, já que estão dois homens a “caldeirar” – engano o meu, o jovem é
estagiário de um curso profissional. Hummm a coisa afinal complica-se! Ele está
a aprender tal como eu.
2 - Depois tiro
algumas dúvidas e registo no telemóvel, fotografo também, para que numa
emergência daquelas que só me acontecem depois das 19h, eu consiga resolver.
Este botão para que serve, o outro e o outro?…
3 – Surge aquela
pergunta idiotamente pertinente: Então agora o que fica mais económico,
caldeiras de gás, gasóleo ou pelletes? E vem a resposta igualmente idiota: todas
são boas, mas tenho em casa uma lareira, aproveito e asso lá uns chouriços. Um
luxo!
4 - A fase de olhar
para o relógio, instala-se após uma hora. Tenho um discurso muito limitado
sobre caldeiras, e não convém trocar mimos da minha ignorância, com quem
mistura bares com Bars.
5 - Arrumo a garagem,
deito fora o lixo, limpo a teia de aranha e o estagiário aprende a despejar
baldes de água no meu quintal.
6 - Entro na fase do
bocejo… e eles continuam sorridentes a esvaziar a caldeira de água de cor da
ferrugem. Como é possível? É esta água que vai para o meu duche? Não, apenas
vai para os radiadores…. Fico mais descansada! Bocejo muiiiito, mas de nada
adianta, exaspero-me a olhar os técnicos à volta daquele paralelepípedo prenho
de tubos e ligações.
7 - Penso no Carnaval
que se aproxima e no Natal que já passou. Penso no Costa, na Geringonça, no
Rio, na Supernanny, neste país de jovens emigrantes, nos velhos do Restelo e nas
pitonisas, que afirmam categoricamente e com uma pontinha de orgulho, que voltaremos
às troikas ou pior. Penso nos velhos que morrem em casa e só dão por eles
muitos dias ou meses depois. Penso nos Correios a encerrar. Penso nas obras
intermináveis da minha rua…
Não adianta bocejar, falar para
dentro, nem olhar repetidamente para o relógio, pois o que tem que se fazer,
tem que se fazer no seu tempo que é lento,… obedecendo à calma da caldeira, à
serenidade e sabedoria dos Sor Costa faxavor, técnico de caldeiras, acompanhado
por um ajudante estagiário, especialista na técnica do cuspe para detectar
fugas. Faz bolha tem fuga, o cuspe escorre languidamente, ´não tem fuga. O
cuspe é fixe, barato e fiável! Se contiver vestígios do vinho ingerido ao
almoço ou do bagaço, já não sei!!!! Convém ter as portas abertas e boa
circulação de ar, não vá a coisa explodir! Mas isso é para o gás… o que não é o
caso, mesmo assim convém.
O melhor é respirar fundo e tentar
carregar alguns bars de paciência. Inventar pequenas tarefas que amorteçam a
espera e aliviem a ansiedade.
8 - Passeio pela
garagem e pelo quintal, tipo Napoleão, acariciando a gastrite, e imaginando a
retirada deste exército de 2, com passo de brigada das caldeiras em formação na
parada do quartel.
9 - Semicerro os olhos
olhando para o sol, e vejo elefantes com asas, multicolores e polifuncionais,
tal capa de álbum Osibisa.
10 - Assobio, trauteio
“Pictures at na exhibition”, imaginando teclas tocando-se dentro de uma
caldeira musical, de decibéis e claves do sol, com o cuspe como certificado de garantia. O que comi ao almoço?
Cogumelos? Não, isso foi ontem!
Não sei como alguém pode gostar de
mecânica. Certamente alguém irá perguntar sobre quem gosta de cimento, ferro e
areia.
Publicado NVR, 2018
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