O nosso silêncio e o hospital
O nosso hospital foi inaugurado há
26 anos. Nessa época permaneci por lá internada por uns dias e tudo me pareceu
relativamente bem. Voltei outras vezes, felizmente a maioria das vezes, como
visita, construindo sempre uma opinião positiva em relação aos cuidados
prestados. Nestes últimos dias aconteceu de novo.
Defendo a saúde pública, o Sistema
Nacional de Saúde, os hospitais públicos, médicos e enfermeiros que aí
trabalham, e até acho que deveriam ganhar mais, para que a exclusividade fosse
uma realidade maior e mais consistente. Em todas as profissões há bons e maus
profissionais, mas os que tratam doentes, admiro-lhes a paciência e a
resiliência. Não é fácil trabalhar nas condições em que trabalham nos hospitais
públicos.
Não sei se têm os equipamentos
necessários ou os mais modernos, não sei quantas horas trabalham, desconheço
por completo as suas carreiras… esta minha reflexão remete-se exclusivamente à
posição de utente. Trabalhar num edifício, com 26 anos, em que os pequenos
detalhes arquitectónicos denunciam falta de manutenção e um envelhecimento
continuado das instalações, merece já por si uma medalha de mérito para quem lá
trabalha.
Os vidros das janelas, já não são
transparentes, são apenas translúcidos devido ao acumular de limpezas
inexistentes, funcionando quase como quebra sol nos dias de verão. Os
parapeitos exteriores têm várias camadas de pó e detritos que parecem vestígios
do Jurássico. O revestimento do chão, em linóleo, tem 26 anos, todos os dias é limpo
de esfregona e lixívia que vai acumulando milhares de micróbios, nos remates do
rodapé, nas emendas do material, que aí residem felizes e contentes, admitindo
sempre novos residentes – cabe sempre mais umas dezenas por dia! Há um percurso
traçado através do linóleo menos brilhante, por onde se realiza a maioria dos
passos dos utentes e profissionais, semelhantes aos jardins pisados em
carreirinhos para chegar mais rapidamente ao lado oposto, sem os contornar. Se
apurarmos o olhar, o linóleo é feito de uma camada superficial de diversas
texturas vincadas que expressam os 26 anos de desgaste diário. Os cortinados
que funcionam como separadores entre as camas das enfermarias, tem mais argolas
soltas do que as que funcionam. Resultam como um plano de contorno irregular,
assemelhando-se a formas fantasmagóricas que se devem adensar nos delírios
febris de cada doente. Nunca vejo ninguém a limpar paredes, a desinfectar camas,
a lavar azulejos das instalações sanitárias, muito menos interruptores e
puxadores de portas… aquilo que nas nossas casas fazemos com regularidade,
quando nós somos os únicos que lá vivem. Não me pronuncio sobre as condutas de
ventilação, mas fico a pensar numa rede invisível, que deve estar inclassificável.
Tudo isto confere ao edifício um odor que mistura sofrimento humano com
limpezas imperfeitas, acentuadas pela degradação natural dos materiais. Os maiores
inimigos das bactérias são efectivamente as máscaras, as luvas e o doseador de
desinfectante de mãos, que estão no lugar certo. Os técnicos de saúde são uns
verdadeiros heróis e anatomicamente especiais, pois já nascem com anti-corpos
para enfrentar toda esta amálgama de potenciais infecções.
Anteriormente, em cada piso, havia
um compartimento no final do corredor, com 2 camas, para que médicos e
enfermeiros pudessem eventualmente repousar durante a noite. O último piso era
destinado a doentes que necessitassem de apoio familiar. Tudo isto desapareceu
para aumentar as enfermarias. Não vi camas nos corredores, aqui não, nas
urgências tantas vezes.
Os doentes queixam-se dos enfermeiros
que os atendem tardiamente, quando tocam à campainha. Não os vejo parados e
quando os vejo, estão a escrever. Também devem ter que fazer relatórios por
tudo e por nada.
Vi doentes com o tabuleiro da refeição
à espera durante uma hora, que alguém chegasse para lhes dar à boca, vi
enfermeiros a tentar salvar vidas, como acto solitário, vi-lhes a paciência
infinita, vi voluntários a tentar ajudar… vi as refeições, o jantar desmotiva
qualquer doente! É provável que nos quarteis e nos estabelecimentos prisionais se
coma melhor. Há panados servidos a negro, depois de passados em óleo queimado e
requeimado. Quem controla a qualidade das refeições executadas por empresas que
apresentam o orçamento mais barato?
[O
sr. presidente Marcelo, agora que constatou que há pobres em Portugal, poderia
de repente aparecer de surpresa numa enfermaria do Hospital de Vila Real, e
comer a refeição de um dos doentes, num sábado ao jantar…]
Percorro o longo corredor da medicina interna,
vou olhando para o interior das enfermarias e vejo pernas esqueléticas de
velhos no final da linha, expostas aos olhares, solitários no zelo pela sua
intimidade/dignidade.
Nem refiro os problemas das
consultas… esperei 3 anos por uma consulta de pneumonologia/apneia do sono, mas
percebi que havia quem tivesse esperado mais e parei de reclamar.
Sou altamente alérgica a ácaros, ou
coloco uma máscara quando entro nas enfermarias ou sou atingida por ataques de
tosse violenta. Tenho um filho, que com 22 anos, esteve entre a vida e a morte,
e foi tratado neste hospital durante 15 dias. Teve uma equipa fantástica a
tratar dele, Dr. Rui Couto, Dr.a Filipa e Dr. Diogo Portugal, a quem estarei
eternamente grata. Num fim-de-semana o meu filho pediu-me que lhe levasse uma
máscara protectora, com vários filtros, daquelas que uso para pintar com sprays,
pois era insuportável o cheiro de urina, que exalava do doente da cama ao lado.
Descobriu um quarto banho no 1º piso, que raramente era utilizado, e descia 4
andares todos os dias, para ali fazer a sua higiene.
Por vezes é impossível eliminar ou
atenuar o sofrimento humano, mas há universos de situações que precisam de ser
denunciadas e solucionadas, porque têm solução. A morte não tem solução, mas
amaciar o seu caminho, tem muitas soluções. Cada doente, devido à sua
vulnerabilidade, raramente reclama ou manifesta a sua indignação. Quer apenas
ir para casa rapidamente, livrar-se daquilo e não olhar para trás. Ir à
secretaria, denunciar, ou reclamar sobre isto e aquilo, é um processo que não
cabe na mente daqueles que querem chegar a sua casa rapidamente e que receiam
ter de voltar para lá.
(…)
e o nosso silêncio significa legitimar situações.
Há aqui a urgência de se juntarem
vontades políticas para se resolver tudo isto, com máquina de calcular, mas
estabelecendo como prioridade a saúde pública. O que interessam festivais da
canção, grandes congressos de partidos políticos, fundações disto e daquilo, institutos
público-privados, grandes lucros na EDP, PETROGAL e PINGO DOCE, guerras do futebol, perdões de divida dos
nossos ladrões figuras públicas, apoios financeiros a escolas e a hospitais
privados?
A fuga para os hospitais privados, não são a
solução. A atitute, cada um safa-se como pode, não é dignificante, nem
civilizacional.
Para finalizar, a nossa actual
ministra do mar, Ana Paula Vitorino, há dias numa entrevista na televisão,
abordou corajosamente a problemática da experiencia que teve, como paciente
oncológica, numa mensagem racional, positiva e optimista. Esteve hospitalizada
na Fundação Champalimaut, mas afirmou que a única diferença em relação ao
serviço público são questões de “aspecto”.
(…)
e o nosso silêncio significa legitimar
situações.
“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio
dos bons.” Martin Luther -King
Publicado emNVR, 28/03/2018
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