IMPLICAÇÕES INTEMPORAIS
A construção
de instalações sanitárias obedece obviamente a regras, que foram evoluindo ao
longo do tempo, dando resposta às exigências fisiológicas e ao bem-estar dos
seres humanos. Os arquitectos conhecem-nas de cor e salteado e tentam até
convertê-las em espaços belos e elegantes, que conferem distinção ao seu
proprietário e até algum glamour.
Se esses
espaços forem de utilização privada, coordena-se o gosto e os hábitos do
proprietário com a estética, resultando soluções únicas e personalizadas. Se
forem de uso colectivo, as normas de bem construir elevam os padrões de
exigência da funcionalidade, pois está em causa a saúde pública, e a imagem/qualidade
do espaço público. Os espaços que mais utilizo são os dos restaurantes, museus
e centros comerciais e acompanham-me certas implicações intemporais, que a minha maturidade já me permite
partilhar.
É frequente
chegar a um restaurante e a única mesa vaga que existe é precisamente aquela
que deveria ser anulada pela sua localização estratégica, junto à entrada das
instalações sanitárias. Assim desde as entradas do pão com manteiga até ao
carioca de limão que assinala o final da minha refeição, presencio em directo,
o entra e sai, masculino e feminino, daqueles que vão lavar as mãos, os que vão
soltar a bufa, os que vão fazer o xixi e o cócó. Obriga-me a visualizar o
aperto da entrada e o relaxamento da saída, ainda envolto dos actos finais de
compostura, o fechar a braguilha, a pinga indisfarçável e o ajuste da cueca, e
que infelizmente nem sempre remata no lavatório. No lavatório é duro e caricato,
eu ter que manter o recato e não me espalhar a rir, com a postura que cada um
adopta em frente ao espelho - lavar as mãos é quase um pretexto, a olhadela ao
espelho sim, uma miragem reflectida com as caretas para alisar rugas e conferir
que se está cada vez mais velho, ou se está a parecer mais novo, e verificar o
sorriso encantador que confere ao ser humano um estilo de primata que só se
deveria manifestar na intimidade mais recôndita. O problema da não existência
do secador de mãos e muito menos toalhetes de papel, tem como reflexo instintivo
e primário, no meu sistema auditivo apurado, de um porra, uma merda ou até
pior, e por vezes ainda levo com o sacudir de mãos para onde calha.
Mas mau, mau
é quando sou eu que utilizo as ditas instalações em qualquer dos locais acima
referidos. Quem me conhece pessoalmente sabe que as minhas joias ou adereços
são uma mochila, uma máquina fotográfica pendurada ao pescoço, os óculos de sol
e guarda-chuva eventualmente. E é assim que eu entro numa instalação sanitária
e vivo a esperança que esta dê resposta às minhas exigências. Por vezes
torna-se difícil escolher a porta pois o designer
quis ser tão, tão criativo, que nem sempre a sinalética é esclarecedora. Depois
da escolha vem a constatação que os fechos das portas já não são os originais -
os originais avariaram e é sempre mais fácil aplicar um fecho de correr
comprado na loja de ferragens tradicional, que também vende penicos, pregos,
baldes, mangueiras – criando-me a incerteza se conseguirei sair dali.
A minha
grande embirração é não ter onde pendurar a mochila e a máquina fotográfica,
assim tenho que continuar com elas às costas e no pescoço. A posição protectora
que todas as mulheres adoptam, para não tocar na sanita, faz-nos praticar a
posição shiko-dachi dos japoneses, nem de pé nem sentada, o que para mim me
acresce a complicação da máquina fotográfica suspensa no meu pescoço, parecendo
um pendulo, oscilando para trás e para a frente, no meio das minhas pernas,
perturbando-me o equilíbrio e a concentração, fazendo-me praguejar através de
palavras para maiores de 18 anos, e perigar a pontaria. Então a luz automática
desliga-se e nasce o caos - shiko-dachi, movimento pendular e eu a esbracejar,
vendo-me numa situação completamente ridícula, pois nunca tive jeito para o
ballet, que naquele momento mais parece os movimentos de braços de um afogado a
pedir por socorro em alto mar.
Depois deste
número circense de cueca nos joelhos, verifico que não há papel higiénico e
tenho ainda que ter acesso à minha mochila para retirar lenços de papel ou
toalhetes, convertendo tudo num exercício de contorcionismo que por várias
vezes me fez cair os óculos de sol dentro da sanita – agora percebem porque
tenho sempre imensos óculos e todos de marca roskof?
O aviso não “deite
papel na sanita, utilize o caixote”, é o primeiro sinal de alarme que denuncia obras
feitas à doc, com saneamento
improvisado, impróprio para um espaço público, com autoclismo super económico
de descarga reduzida, sem fluxo para arrastar os detritos, e não adianta
repetir a descarga, eu tenho mesmo de abandonar a retrete com a limpeza
incompleta.
Chega o
momento de lavar as mãos na ante-câmara e a indecisão se a água funciona por
pedal ou por célula eléctrica e onde está localizada. Pareço uma invisual a
tatear o espaço… e há sempre uma madame
que passa e me olha de soslaio, como se eu fosse a maior ignorante tecnológica
do mundo. Finalmente a água sai da torneira e eu fico feliz, porém o sabão…. o doseador
suspenso na parede, não funciona ou está vazio. Aligeiro a higiene querendo passar
apenas as mãos pela água, mas entretanto a água deixou de correr e tenho que repetir
o momento do invisual. Também pode acontecer o contrário: a minha excessiva confiança
e optimismo, faz-me por vezes acreditar que tudo correrá bem, levando-me a retirar
primeiro o sabão do doseador e depois não conseguir ligar a torneira.
Finalmente
quando o secador de mãos está avariado ou já não existem toalhetes de papel, eu
já perdi a paciência e então recorro ao truque de meter as mãos molhadas nos
bolsos traseiros das calças, para elas enxugarem ligeiramente.
Já nem
descrevo o balde e a esfregona arrumados num canto, destruindo todo o encanto
dum wc e quando a precisão é urgente, ter o dom de escolher sempre um WC em
manutenção.
Imaginem a
minha cara ao sair destas instalações sanitárias: não, não se trata de obstipação
ou gastroenterite, é apenas mais uma aventura sanitária que chegou ao fim.
Publicado em NVR, 17/01/2018
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