Sendo dia de poesia
Sendo dia da poesia, escrevo em
prosa e não em verso, para que a distinção se sinta nesta minha atitude ousada
de insistir em juntar as palavras sem regra. Escrevo sem rima, sem métrica, sem
estrofes, sem versos, ao meu ritmo e ao meu estilo, aventurando-me em
território desconhecido e que não domino. Escrevo como vivo, um pouco em
desalinho, um pouco em contramão, abrindo os canais das vivências interiores e
dando-lhes forma, sem filtros, sem regras, ensaiando a liberdade plena que só
os ignorantes praticam. Nem sempre distingo o verso da prosa. Para mim tudo o
que dou um sentido mais estético e mais profundo, mais temperado com toda a ansiedade
e carência afectiva que habitam em mim, é poesia.
Gosto de poemar.
Gosto de me expressar em linguagem
intrigante, inquieta e misteriosa, que tenha impactos diversos para quem a lê
ou quando se lê. Descubro-me só, nestes momentos mágicos da escrita, não
conseguindo prever quando escrevo, o que escrevo e para quem escrevo. É uma
aventura dialéctica que flui na primeira pessoa, como se fosse um auto-retrato primaveril,
que me tranquiliza desenhá-lo e vive-lo, descobrindo sensações diversas no meu
íntimo sentimental.
Poemar é viver sempre na linha que
divide o real do onírico, realçando o sublime e o simbólico, é ser capaz de dar
brilho a encantamentos obscuros que desconheço em mim. É um grito imprevisto, é
um gozo profundo, traduzidos numa linguagem feita de corpo e de alma, que pode
ser doce, elegante, com fragância a jasmim, mas também pode ser agressiva e
violenta, capaz de rasgar preconceitos, mover precipícios, derrubar muros e
libertar lágrimas salgadas de mim. É melodia sem pauta, é dança com fogo, é
geometria sem teoremas, é mar solto sem horizonte, é tempo intemporal e sem
dimensão com perspectivas diversas.
É ouro… é prata recortada de luar.
Escrevo para quem?
Mas tem de
haver alguém no destino?
Escrevo
para a terra vermelha, escrevo para um homem que não existe, escrevo para a
paixão infinitamente trancada no meu coração, escrevo para quem se irmana
comigo neste desespero desassossegado e profano de estar e não estar, escrevo
para aqueles que acreditam no arco-iris, escrevo para o universo que me inclui e
me respeita, vestida na minha reduzida dimensão.
In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” – Anabela Quelhas
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