Desconstrução da humanização
Todos nós
parecemos actores da história da Bela Adormecida. Por vezes, mesmo sem
príncipe, parecemos sair da nossa letargia militante e acordamos para os
problemas do mundo.
O mundo
existe desde que é mundo, mal ou bem entra pela nossa casa todos os dias e a
todos as horas, mesmo sem pedir licença. Carregamos o mundo no telemóvel, no
tablet, no computador, diariamente num estado de adormecimento, egoísta,
consentido e aflitivo. Pontualmente acordamos com notícias, que a comunicação
social passa e repassa, forçando o conhecimento do receptor, assumindo a função
do despertador a tilintar logo de manhã junto da nossa existência.
Desperta-nos
e devolve-nos o mundo em que vivemos.
Acordámos
com o 25 de Abril, acordámos com o “acidente” de Sá Carneiro, acordámos com Timor,
acordámos com a tentativa de assassinar João Paulo II, acordámos com Mandela, acordámos
com a guerra do golfo, acordámos com Gorbachev, acordámos com a morte de Diana,
acordámos com a queda do Muro de Berlim, acordámos com a SIDA, acordámos com o
11 de Setembro, acordámos com o Acordo das Lajes, acordámos com o tsunami do
Índico, acordámos com o juiz Rui Teixeira, acordámos com a gripe A e com o
ébola, acordámos com o Duarte Lima, acordámos com a Madeleine Mcann, acordámos
com Obama, acordámos com a Troika, acordámos com o Pápa Francisco, acordámos
com o Salgado, acordámos com Charlie, acordámos
com a prisão de Sócrates, acordámos com a Grécia, acordámos com a fotografia do corpo da criança Síria a dar à costa,… acordamos
apenas com os ícones, podendo ser da desgraça ou não, transportando situações
diversas com grande complexidade de conteúdo, potenciando outras, e que criam ondas de solidariedade no apoio ou
no protesto, feitas desta massa colectiva que somos nós, humanos adormecidos.
Atitudes que se manifestam voláteis e efémeras….
Quem explica
isto?
Quando
acordamos, manifestamos a nossa indignação exaltamos valores culminando com o
humanismo, que da esquerda à direita, todos julgamos possuir e defender. A televisão,
a imprensa e as redes sociais atiram-nos com os que fazem opinião, e estes opinam
numa operação de “baralhar e voltar a
dar” como se fossemos singelas cartas de um baralho obediente, apelando para a
história, para a politica, para a economia, para as culturas, para as lógicas
ilógicas de ocasião e para factos convenientemente esquecidos, exercendo o
contraditório, indignando e pondo em causa a breve indignação de cada um de nós,…
vêm os políticos, os jornalistas, os advogados, os analistas e até aqueles que tem grandes
responsabilidades no pais onde vivo, confrontando assertividade, com deturpação,
com demagogia e conseguindo com algum sucesso a desconstrução do pouco
humanismo que cada um ainda conserva em si e que tem a esperança preservar numa
perspectiva ingenuamente solidária. Esta digladiação informativa é fugaz, dura
dias ou poucos meses, e nós reagimos, opinando, mostrando a nossa indignação e
o nosso lado heróico pelo mediático, mas este desvanece-se em consonância com a
notícia que deixou de o ser, e voltamos a hibernar, adormecendo no nosso
castelo encantado, até ao próximo despertar.
Todos estes
casos têm apenas em comum, o processo, o acordar, a indignação inicial, a
indiferença posterior, o readormecer passado o impacto da novidade e do prurido
causado, e o esquecimento.
Entre uns e
outros, acontecem as vitórias e derrotas clubísticas que formam um mundo à
parte do nosso mundo, e os escandalozecos cor-de-rosa (aquela que fotografou
nua com quem, o outro que descasou e aquele que entrou nos Óscares) que
funcionam como bálsamos da desgraça, tipo prozac
providencial + Kompensan divino, ajudando-nos a esquecer e a mergulhar em mais
um sono dos justos. Sim, porque cada um de nós, comodamente deitados em posição
de Bela Adormecida, convence-se de que é justo, sossegando a consciência.
Entretanto,
enquanto dormimos, tudo continua a acontecer exactamente da mesma forma que nos
surpreendeu e indignou; nos cenários internacionais, num primeiríssimo plano, negócios
de armas, de guerra, de paz, de petróleo e de dinheiro e em 2º plano, lá
continua o desemprego, os sem-abrigo, os doentes, a má gestão dos dinheiros
públicos, o racismo, a mutilação genital feminina, os animais abandonados, a
poluição, a violência doméstica, a pedofilia, a prostituição, a exploração do
trabalho infantil, a caça aos elefantes, as máfias, a escravidão, a falta de
água, o cancro, os refugiados e toda a lista de indignidades e enfermidades,
cujos 7 pecados capitais, mais os veniais, são incapazes de conter e que vêm
sufocando este animal estranho, pretensamente racional e civilizado, que é o Homem
do século XXI.
Publicado no NVR - 23/09/2025
5 comentários:
MESMO.
ESCREVES POR TI, POR MIM E POR CADA UM QUE PENSA.
<3
jEKILL
Escrita que nos leva a refletir e a acordar a consciência ...Muito bom o teu texto ! Penso que todos (?) nos identificamos com as tuas palavras e sentimentos...Estamos num tempo em que a mediatização nos atordoa e acabamos por dormir e nada fazer... somos solidários, ativistas mas não agimos. Não suficientemente. Impotência, comodismo, esquecimento, egoísmo, incapacidade; há tantas desculpas, pois é ! Mas o acordar das consciências é vital e lendo-te sentimos que há que sair desta letargia...numa época em que a rapidez dos acontecimentos e a rotina quotidiana nos abafam ! Obrigada, Anabela !
Gosto muito de ti Ana.
Bj
A. P.
Olá Alberto, vê se me podes ajudar. Roteiros traduzidos sobre, Moscovo, Macau, Buenos Aires e Dakar.
Perdi o teu telele e o mail morreu, eheheh depois explico.
Beijo, beijo
Ana André, sempre atenta ao que eu vou escrevendo. beijinhos e obg
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