Anónimos (4)
Cruzo-me com elas no
corredor do hospital, com bata azul e não usam estetoscópio ao pescoço.
Arrastam um balde e uma esfregona sobre o pavimento de linóleo azul ou de
marmorite, rematado por um rodapé de plástico, colocado a trouxa moucha, sem
grandes preocupações estéticas, a dobrarem esquinas de forma pouco rigorosa. Revestimentos
de diferentes famílias foram aplicados com se nunca ninguém olhasse para eles,
fruto da desatenção do
responsável pela construção do edifício, que desconsiderou que nos hospitais
não pode haver ângulos onde se acumulam sujidade e toda a comunidade de vírus e
bactérias.
Elas passam a
esfregona, que foi crescendo, até atingir a dimensão de cerca de 95 centímetros
da largura. Aquela plataforma de limpeza vai deslizando por aqui, por ali,
dando a aparência de piso higienizado. Desinfectado já não digo, porque me
parece que a maioria das vezes o piso apenas se molha e a sujidade troca de
lugar com a sujidade vizinha, e vai estacionando nos rodapés que deveriam ser
inexistentes sobre remate circular, até que a esfregona se levanta, encolhe e
mergulha num balde que contém água e detergente líquido, adquirido aos quilolitros,
sempre com o mesmo cheiro. Desconheço-lhes o nome, a idade, o seu contracto de
trabalho. Ninguém lhes liga, ninguém fala com elas, apenas pisamos as
superfícies que acabaram de limpar, sem qualquer reactividade por parte delas.
Parecem autómatos, sem coração, nem alma, a percorrer centenas de metros
quadrados de corredores, enfermarias e gabinetes. Quando chegam ao fim, voltam
ao princípio, num percurso sem fim. O seu trabalho nunca está concluído e isso
parece não incomodar a sua apatia crescente.
Quantas serão?
O que sentirão num
serviço tão cheio e tão monótono?
Quantas horas estarão
em pé?
Alguém sabe o seu
nome?
Há alguém que lhes
ofereça um sorriso?
Parece que fazem parte
das infraestruturas hospitalares, parecidas com a canalização, as condutas de
água e de ar condicionado, mas são pessoas, são mulheres, com idade, com
família, com filhos e com o seu mundo de complexidades semelhante ao nosso. Não
são robots, não são mecanismos com porcas e parafusos, nem mesmo com chips
programados para esta função.
Algum dia usufruíram
de alguma gentileza?
Ouvem as palavras
mágicas, obrigada, com licenças, por favor, desculpe, bom dia, até já?
Alguém se importa com
elas quando ficam doentes?
Sabemos quanto ganham
num mês de arrasta e limpa?
E elas continuam
naquela tarefa impessoal, por aqui, por ali… Para elas também deve ser
indiferente com quem se cruzam, se são velhos ou novos, se chegam adiantados ou
atrasados, se estão internados ou se estão na urgência com um AVC.
Esta é uma das muitas
facetas da desumanização da nossa sociedade, atribuindo indiferença à dor e
sentimentos dos seres humanos. É a falta de empatia entre seres humanos
fisicamente próximos, não se comovem ou não se indignam.
Os motivos são
diversos, as circunstâncias, individuais e sociais, existentes são ignoradas e as
pessoas tornam-se cada vez mais distanciadas da “essência” da chamada condição
humana.
Publicado em NVR, 15/11/2023
1 comentário:
Mais um tema interessante
Enviar um comentário