Anónimos com nome [2]
Cumpri a trilha dos fornos de cal de
Campanhó.
Passado o Alto Velão
vira-se à esquerda, e segue-se em direção a Campanhó – estrada de montanha
estreita, sinuosa, sempre com curvas em U, que é necessário calma e cautela na
condução. A paisagem é fabulosa e perigosamente receptiva a um despiste.
Já me tinha perdido
outras vezes para chegar lá. Desta vez, consegui chegar ao sítio. Um dos fornos
está muito bem conservado e com acesso fácil, outros, merecem uma limpeza de vegetação
espontânea.
A cal viva reage
violentamente com a água, gerando grande quantidade de calor, o que dificulta o
seu transporte por barco ou por terra, considerando as condições atmosféricas.
Assim, era mais fácil transportar o calcário, que é quimicamente estável, e
fazer localmente a calcinação, recorrendo a estes fornos alimentados a lenha.
Para quem sabe
interpretar:
CaCO3 + calor → CaO +
CO2
Os fornos eram quase
sempre cilíndricos, que acolhiam as pedras de calcário (no local disseram que
eram de “mármore cinza”) e através de uma abertura na parte inferior do forno,
seria onde se colocava lenha a arder, assegurando um processo de cozedura de
800 a 1000 graus. O topo do forno, aberto, evitaria a formação de vapor que
estragaria a cal viva. O processo durava 6-7 dias.
Resultavam pedras
transformadas pela temperatura, denominada cal viva, sendo cuidadosamente
retiradas, após o arrefecimento e utilizadas não só para caiar como para fazer
calda bordalesa para eliminar o míldio das videiras.
Se algo corria mal na
queima, por exemplo, o excesso da temperatura, produzia a cal não reactiva, designada pelos caleiros como
"cal queimada", que já passou do ponto. Não havia termómetros, para
aferir a temperatura, o controle era feito pela cor do fumo, mais escuro ou
mais branco.
Nestes fornos
trabalharam muitas pessoas, homens, mulheres e crianças, algumas ainda na
barriga das mães. A idade laboral iniciava-se quando conseguissem transportar
pedras dentro de uma cesta ou à cabeça. Terão nascido assim os caleiros,
profissão destes anónimos com uma vida inteira dedicada à transformação da cal.
Não tinham seguros, nem protecções, que evitassem queimaduras graves, nem luvas,
nem botas, nem viseiras; não tinham férias, não tinha dias feriados, não tinham
nada, apenas, mãos, força e o vazio no estomago. As noites sucediam-se aos dias
e a lenha tinha que estar sempre a arder; um trabalho duro de partir pedra,
carregar lenha, vigiar o forno. Lidar com cal criava lesões à pele e aos olhos
- queimaduras, comichões, alergias – todas elas mais suportáveis do que a fome.
Quantas paredes foram
caiadas por esta região? Caro leitor alguma vez pensou nesta gente anónima, que
ano após ano em troca de um salário miserável trabalhava noite e dia, naqueles
fornos da brancura? Entre o fogo e o sofrimento caiavam-se paredes. De quem
eram as mãos calejadas e queimadas que estavam na base deste processo de
transformação? Nunca ninguém registou o sofrimento ao longo da história que
remonta os 14.000 mil anos, com destaque em várias sociedades da Antiguidade. O
processo, sempre igual, o fogo e a fome, que anula a identidade de todos.
Publicado em NVR, 28/07/2023