Anita pensa mudar de casa
Anita vivia no centro
da cidade, num edifício com propriedade horizontal, boa paisagem, perto do
comércio local, a dois passos do restaurante que servia optimas francesinhas,
para apanhar o comboio era só atravessar a ponte, o sapateiro ali mesmo ao
lado, passeava todos os dias a pé pelas ruas do centro histórico, conferindo-lhe
alguma qualidade de vida.
Cansava-se a carregar
as compras da garagem, da cave até ao rés-do--chão e depois ter que subir uma
escada exterior até ao primeiro andar, para apanhar o elevador. Uma escada mal-parida
projectada em noite de apneias nocturnas, que cansava todos os moradores. A
força juvenil da Anita ultrapassava este constrangimento. Os foguetes da festa
dos Lázaros estouravam a altura da sua janela, o Sto António balburdiava e
entrava pelas janelas da traseira, o S. Pedro fechava a rua, nas corridas, a
Anita punha uma mesa de iguarias, na sexta-feira de manhã e ficava posta até
domingo à noite, com entrada livre para toda a família ficar à janela a ver os
automóveis a passar; até que um dia nasceu um edifício-hotel, esmagando um
parque cheio de árvores, e esse hotel permaneceu no seu mísero esqueleto de
pilares e vigas, durante anos, com uma piscina cheia de água inquinada,
produzindo mosquitos para todos os adjacentes.
Anita recebia poucos
amigos, porque não era possível fazer barulho depois das 22 horas, e tinham que
dar umas voltas para estacionar, o carteiro deixava o correio onde calhava, a
vizinha de baixo, era daquelas senhoras que não rapam os sovacos e têm como
companhia uma cobra e uma iguana, dando origem, a maus encontros no elevador e ao
encerramento de todas as condutas de ventilação, não fosse a cobra querer ver a
decoração do apartamento da Anita.
Um dia a Anita
iludindo-se que numa moradia localizada numa zona residencial, fora do centro,
iria aumentar a sua qualidade de vida, fez a mudança, para uma rua sem saída de
bairro sossegado, no último lote existente, adivinhando alguma estabilidade
urbanística, para evitar surpresas futuras. Ali parecia-lhe que estava quase no
paraíso. Tinha uma habitação maior, sem escadas, sem foguetes, sem a nudez ignóbil
de um hotel, sem iguanas. Podia receber a família e os amigos, poderia fazer
mais barulho, todos estacionavam perto, na própria rua… Vivia numa rua com vizinhos
discretos, que só passavam, para colocar o lixo na rua paralela. Nem o carro do
lixo lá passava, e o carteiro passava silencioso apenas quando havia correio…
Uma paisagem
fantástica, tudo parecia estar a correr bem, até que um dia, viu umas marcações
na rua, depois na outra e rapidamente todo o bairro entrou em obras. Nunca
ninguém reclamou por obras, mas impuseram-nas. Na sua rua, as obras demoraram quase
um ano - lama, pó, charcos, blocos, paralelos de granito, carretas, camionetas,
carrinhas, vistorias, piropos dos calceteiros, das 8h às 17h. À noite ir
colocar o lixo era uma aventura, Anita fazia-o de galochas, sair, era de
automóvel, sempre cheio de lama.
Os anos passaram, para
pior, uma meia dúzia talvez... O tratamento que fizeram à sua rua foi realizado
obedecendo a critério duvidoso e desconhecido… passou a não haver lugares para
estacionar, os passeios alargaram sem haver pessoas para passear. No final de
uma obra deveria haver um questionário para os moradores preencherem e dizerem
se ficaram melhor ou pior. Se o fizessem certamente saberiam o impacto negativo
que teve esta obra na vida destes habitantes. O problema da Anita é comum a todos
os seus vizinhos.
A avó da Anita passa a
vida a dizer:
- Arranjem-me uma “rebarbadeira”
que resolvo o assunto numa noite.
- Oh Vó já não estamos
em Paris em Maio de 68!
Anita, hoje, quase não
tem visitas, para poder fazer barulho até tarde. Quando as tem, são raras, encontra-se com elas
no estacionamento do Continente, vai almoçar com elas ao shopping, ou ao
mc, tenta uma esplanada para passar a tarde e finalmente inventa um
compromisso para as despachar, porque ninguém pode parar na sua rua.
Os familiares mais
envelhecidos, telefonam-lhe, antes de a visitar. Anita vai buscá-los a casa e
saem na garagem da sua moradia. Quando chegam visitas de fora, durante o dia, transportando
malas, a Anita tira o seu carro da garagem, cede o espaço às visitas e vai
estacionar, ao parque da avenida, ao Aldi ou ao estacionamento do teatro e
regressa de táxi. É que o parque de estacionamento destinado ao seu bairro
residencial está cheio de viaturas de médicos, professores e utentes, que
trabalham na escola e no centro de saúde. No início todos pensavam que a Anita
descartava as suas visitas, com tanto constrangimento e combinação por
telemóvel, depois verificaram ser mesmo assim, esta desastrosa (des) organização
urbana e deixaram de ir.
Anita
pensa em mudar de casa, mas sente-se apreensiva, temendo que lhe aconteça o mesmo, porque esta
epidemia da cidade verde para pessoas, tem um lado desumano e que tende a
alastrar no território, porque as cabecinhas pensadoras, iludem-se que não
envelhecem, que todas as cidades são iguais, que andarão a abraçar árvores toda
a vida e não sabem distinguir, centro histórico, zonas comerciais e zonas
residenciais.
Anita comprou uma
bicicleta, mas a síndrome vertiginosa, ataca em todas as idades e não lhe
permite, nem bicicleta, nem trotineta, nem bus. Anita está indecisa, se deve
inscrever-se num lar da terceira idade, se muda para uma aldeia bem longe sem
rotas de javalis para proteger, ou se tenta convencer um sargento para lhe deixar
ocupar alguma caserna no interior do R13, em troca de fotografias nos
juramentos de bandeira. Esta última opção é a que lhe parece mais viável, porque
da sentinela para dentro, quem manda são eles e lugares para estacionar não
faltam. No parque de campismo não aceitam vizinhos, o CIFOP, ora está lotado,
ora esta vazio, o seminário cheira muito a incenso e não acolhe agnósticos,…
Sugeriram-lhe um
contentor amovível ou uma autocaravana, que possa ficar no estacionamento do
teatro e aí, receber as suas visitas com possibilidade de fazer um programa
cultural, descer até ao rio para ginástica matinal, comer kebabs e fazer
compras no shopping, sem grandes complicações. Quando lhe plantarem
esculturas metálicas, cilíndricas, de 2 em 2 metros… Ála que se faz tarde, bora
lá mudar de lugar e dar vazão ao seu lado nómada, que tem despertado com a
evolução dos tempos.
Publicado em NVR 26/10/2022