Questiono-me
sobre a legitimidade da minha apreciação, sendo eu um dos personagens
implícitos, inclusive fazendo parte do rol de anónimos a quem a autora também
dedica o livro, hesitei.
Contudo, a
honestidade da narrativa, obriga-me ao distanciamento do meu personagem,
colocando-me na posição de leitor anónimo e descomprometido. Acto dificílimo,
tratando-se de Luanda, cidade lar e terra onde pertenço.
A apresentação gráfica facilita a leitura não faltando
apontamentos, em rodapé. de informação histórica que enquadram a narrativa no
tempo e, em simultâneo, ajudam a entender a sequência do texto.
Uma nota especial para os salpicos de poesia com os quais
Anabela Quelhas, em nome próprio ou sob pseudónimo, vai entrecortando a prosa.
Estamos perante
uma estória de amor e, profundo. Amor pela terra onde nasceu, de onde saiu e a
ela em menina, regressou para de lá ser “tirada” contra vontade, já quase
mulher.
Com o som de um
Kisanji como música de fundo, a estória vai sendo contada, sempre na primeira
pessoa, recorrendo muitas vezes à linguagem que então se usava, sobretudo entre
a juventude, que sendo uma estória de amor, recusa, no entanto, a banalidade
dos enredos e detalhes, técnicas pobres de escrita a que alguns recorrem para
prender o leitor. Não obstante, é difícil não a lermos de seguida até ao fim.
Sem complexos
nem estigmas, a criança que cresce e desperta para o mundo que a rodeia,
questionando-o, conta a vida e as estórias da cidade, através das suas
vivências, nunca perdendo a noção que a sua cidade não era igual à de todos e
que nas outras cidades ali ao lado da sua janela, os sonhos eram outros e as
vidas muito mais difíceis.
Os personagens
sucedem-se ao ritmo do crescimento e com eles vêm os locais e os viveres de uma
geração, a última da época colonial, a lá ter nascido.
A escritora,
usa os olhos da menina que se fez jovem, para contar a cidade, recorrendo~se da
mulher arquitecta. Aprendemos com ela, ao confrontarmos as memórias que
guardámos, com as interpretações e leituras da mulher, arquitecta e escritora.
Sem parar a
narrativa de uma vida, vai-nos lembrando que havia guerra e que jovens
portugueses eram forçados a ir para lá combater outros jovens, que apenas
queriam o país que lhes pertencia.
” Há algo que
paira no ar, que todos respiramos, um pulsar de uma terra inebriante, que gera
entusiasmos, sonhos, vontade de vencer e nos injecta diariamente uma dose
elevada de otimismo e adrenalina.”
Eis a frase que
brilhantemente descreve o sentimento inocente de toda uma sociedade “branca”
que fervilhava naquela cidade, no decorrer dos anos 60 e 70. O sonho de um
futuro.
A história dos
homens leva ao final da narrativa da estória de vida da menina que cresceu e
chegou a adolescente, sempre a questionar.
Ao terminar a
autora não se esquece dos dramas vividos por muitos, tantos, que foram quase
todos os que de um dia para o outro tiveram ou decidiram largar uma vida,
deixando os sonhos do futuro nas casas fechadas, nas fábricas e fazendas
abandonadas, nas viaturas estacionadas à porta de uma lar e de uma vida onde
jamais voltariam.
“A noite está
calma, já há pouco movimento na rua. Cada um pega na sua mala, lança um olhar
pelo espaço que nos acolheu vários anos, com móveis e os quadros no seu lugar,
como se fossemos apenas de férias – tudo arrumado, toalhas limpas nos
toalheiros, frigorífico ligado, filtro de água, persianas corridas para evitar
o Sol, tapetes no chão a testemunhar a nossa despedida.”
Por questionar
em pequena a mulher adulta entende o passado e respeita presente. Percebe-se ao
longo da narrativa que, como tantos outros, Anabela Quelhas nunca de lá saiu.
3 de Fevereiro
de 2021
João Pedro
Fonseca
1 comentário:
5 estrelas
Parabéns pela análise.
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