Quando escrevi o meu último livro,
não sabia como referir-me aos mais escurinhos, se devia chamar-lhes, negros ou
pretos, para não ferir ninguém e para não ser conotada como racista, colonialista,
exploradora e sei lá o que mais.
Os conceitos vestem-se de palavras,
distraindo o observador do seu verdadeiro conteúdo. Finge-se com o palavreado,
para se alinhar no politicamente correcto. Tudo fica com mais brilho, mais
digno, mais clean, muito mais chique…
mas tudo é mesma coisa. A pompa das palavras, bem espremidinha, como se costuma
dizer, o que dá? Mais do mesmo, mas pronto!
Mudam-se as palavras, o conceito
permanece.
A palavra forte, aborto,
substitui-se por Interrupção voluntária da gravidez – 3 palavras para substituir
uma só e que não dá jeito nenhum para insultar.
—Tu és um aborto!
Tem impacto!
— Tu és uma interrupção involuntária
da gravidez!
… já não é a mesma coisa.
Eutanásia, seria algo criminoso,
morte assistida é mais tolerável.
Na escola, os mal-educados e
irrequietos passam a ter comportamentos disfuncionais hiperactivos. Na escola
não se pode dizer que um aluno é pouco inteligente, deve dizer-se que possui
dificuldades de aprendizagem… assim como, ele é um baldas ou um calão, deve
dizer-se que tem interesses divergentes da escola. Os desatentos, têm deficit
de atenção.
Bicho do mato — pouco sociável.
Cego — invisual
Alguém que tem uma opinião política
diferente da maioria, diz-se que investe numa política fracturante. Se tomou
uma bezana, ficou embriagado ou até ébrio, dando um ziguezagueado muito mais
delicado.
As mães solteiras passaram a ser
autoras de produções independentes e, mais actualmente, geram famílias
monoparentais.
Os amancebados já não são criticados
pela sociedade, passando a ter uma união de facto.
Os patrões e chefes passam a líderes,
e os operários, a colaboradores.
Contínuos — assistentes operacionais;
Caixeiros viajantes — técnicos de
vendas;
Deixei de ter criada, passei a ter
empregada doméstica, depois funcionária de limpezas e hoje tenho uma auxiliar
de apoio doméstico.
O salva-vidas é hoje o nadador-salvador.
O careca passou a ser um paciente de
alopecia.
Drogado é toxicodependente.
As fábricas convertem-se em unidades
de produção.
O analfabetismo passou a iliteracia,
e a teimosia, passou a resiliência.
O cócó passou a ser resíduo
sanitário sólido. A escolha dos cócós, gestão de resíduos sólidos.
Esterquice — poluição;
Lixeira — aterro sanitário.
As cadelas já não estão com o cio,
estão em fase de acasalamento e reprodução.
O aleijado assume-se como deficiente
motor, o gajo irritante, instável e neurótico, que tanto ri como chora, passou
a bipolar.
Asilo — casa de repouso ou lar da 3ª
idade. A mitra — casa de acolhimento.
A cadeia, já não é cadeia, porque
pode traumatizar, é estabelecimento prisional e quem lá vive, é alguém
provisoriamente privado de liberdade.
As palavras estão cada vez mais
chiques e mágicas, calçam sapatos de verniz, vaporizador contra o mau hálito e
muita laca no cabelo. Palavras que tornam a realidade mais leve e mais
motivadora.
….
Escolhi negro em vez de preto, mas
não sei se fiz bem, afinal chocolate preto é bom, lista negra, é mau. Feijão
preto é bom, mercado negro é mau.
Palavras chiques em salto alto.
Publicado em NVR
8/07/2020
2 comentários:
eheheheheh
Adoro-te
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