Traição e derrota
Estou em
Riga vivendo o ambiente romântico que a Arte Nova sempre me proporciona,
apreciando edifícios projectados especialmente pelo arquitecto russo Eisenstein,
conferindo a esta cidade o registo adequado para fotografar e recordar mais
tarde.
Escolhi o
livro de lombada mais fina para me acompanhar e ler antes de adormecer,
alimentando vicio antigo. É com surpresa que leio uma história com o
enquadramento das encostas do Douro, onde se faz uma abordagem da traição e da
derrota, num romance sobre um casal no final de uma relação. É apenas uma história
igual a tantas outras, sem conteúdo científico, porém, parece-me bem verdadeira
e acutilante.
A maioria
dos casais, quando se separam, por decisão unilateral, a parte que nada
decidiu, acaba por partir à descoberta do(a) rival, o(a) causador(a) do
insucesso da parceria conjugal. Nada mais lhe passa pela cabeça a não ser,
alguém que lhe roubou o(a) parceiro(a). Apenas foca o pensamento nisso não
admitindo que pode não haver traição, nem rival. Movem montanhas, espreitam a
vida do(a) outro(a), para ver com quem se encontra, para aonde vai, com quem
janta, a que horas regressa a casa, como está vestido(a), quanto tempo permanece
em casa, se possível passam a pente fino o computador e o telemóvel, na
desesperada procura e confirmação da suposta traição.
Esquecem a
ética, a dignidade e chafurdam em áreas que não lhes compete, invadindo o
espaço do outro, devassando a privacidade a que cada um tem direito. Se tiverem
dinheiro até contractam um detective, para que a informação lhes chegue bem
documentada, anestesiando a irritação do seu ego, dando-lhe carradas de razão
em discussões perfeitamente idiotas e irracionais, desenhando memórias
inexistentes e que lhe alimentarão a depressão futura.
Moem e
remoem essa ideia martirizando-se com ciúme, dor, sede de vingança e por vezes
reagem violentamente, agredindo o(a) parceiro(a) verbalmente e ou fisicamente,
não admitindo a rejeição. Ameaçam matar-se, como reduto final, apelando à
misericórdia, como se a felicidade estivesse assegurada com a piedade pelo
outro e ignorando todas as advertências e mal-estar demonstrados ao longo do
tempo. Constroem “filmes” na sua insegurança bem escondida, sofrem, choram, atribuem
significados especiais e duvidosos a situações vulgares, mas raramente pensam
que pode não haver traição. Isso é inconcebível porque equivale ao seu
fracasso, à sua derrota e à sua incompetência. É muito mais fácil atirar a
culpa para os outros.
É difícil e
doloroso assumir culpas porque isso é pôr em causa a sua acção que ao longo dos
anos se entendeu ser muito acertada, nunca questionando se seria acertada para
o outro(a). A competição ao longo do tempo não foi com um terceiro elemento,
mas sim consigo próprio. É difícil reavaliar os seus próprios conceitos e
separar os erros que se repetiram constantemente e massacraram o outro, para
além do tédio permanente que se foi instalando na re(a)lação. Todos os dias o
objectivo deveria ser melhorar, superar-se e saber surpreender pela positiva
o(a) outro(a), cuidando da felicidade dos dois — todos os dias, como se cada
dia fosse o último dia das suas vidas. Mas não foi assim! Reconhecer isso é
mais doloroso do que ser traído. O(a) “outro(a)” é o próprio e não saber lidar
com isso é o desconserto de tudo, que nenhuma garrafa de uísque consegue afogar
e que atormentará cada minuto de reflexão futura. Tudo isto requer uma
aprendizagem que nem todos estão predispostos para investir, porque exige
esforço, inteligência, altruísmo, cedência e preocupação na desconstrução da
realidade.
Apesar de
doloroso, é mais fácil culpar os outros do que mergulhar na escuridão que vive
dentro de cada um e acender a luz.
Estou em
Riga, apreciando o naturalismo esculpido na arquitectura urbana. Curiosamente, sempre
acontece em viagem, cruzar-me com noivos que se fazem fotografar em ruas
interessantes, com os seus egos elevados e de cara bonita. Oiço alguém dizer:
— Logo estarás
a lavar a loiça e ele de pantufas a ver futebol.
Nunca é
demais escrever sobre este tema.
Publicado em NVR
3 comentários:
Gostei muito do texto. Há uma falta de cuidado nos casais para desenvolver a sua relação de forma saudável, divertida e estruturada.
Beijinho
Tão verdade.
Ana Cadé, sabemos que há. Volta sempre. Beijinho
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