27 abril, 2019

Os sítios, a história e a necessidade de não esquecer


Os sítios, a história e a necessidade de não esquecer
            Nós seres sociais, que habitamos em aglomerados, ruas, avenidas, alamedas, becos e travessas, somos insensíveis, ou melhor, pouco atentos à nossa envolvente (espaço e tempo). Despertamos para uma montra, os locais onde podemos estacionar, as ruas que mais rapidamente nos levam de um local a outro, o sítio da feira, um jardim qualquer, o shopping, o cinema, o teatro e uma igreja barroca que nos assalta o olhar pela sua exuberância. Por vezes sabemos o nome da rua, raramente sabemos a razão da toponímia e quase nunca sabemos o que se passou naquela rua, há 10, há 100, há 500 anos. Esquecemo-nos que os sítios e as suas construções são testemunhos mudos da nossa história.
            Já imaginaram como seria interessante chegarmos a uma rua e conseguirmos, talvez com uns óculos virtuais, sintonizar o passado? Se pudéssemos olhar para uma gravura de um local, suspensa numa parede, e ela ganhasse movimento e vida, poderíamos falar com as pessoas retratadas. Que perguntas lhes colocaríamos?
            Para quem me lê pode pensar que comi cogumelos mágicos ao almoço, devido à utopia desta ideia. Não comi. Hoje é dia 25 de abril e amanheci a ver um filme inédito da RTP sobre a cidade do Porto, realizado nas ruas da cidade, no dia 26 de abril de 1974. As novas gerações passam pelo actual Museu Militar, localizado no Largo Soares dos Reis, e não imaginam que no dia 26 de abril de 74, aquele largo estava cheio de cidadãos inquietos, aguardando o que os militares iriam fazer à PIDE/DGS, com sede nesse edifício. As pessoas sorriam, com expectativa nos olhares e uma esperança colectiva indisfarçável, vivendo um momento histórico irrepetível. Esses momentos foram-se diluindo ano após ano, sobrevivendo apenas o reconto, também cada vez mais esfumado.
            Os edifícios assistiram a tudo, ao antes, ao depois e ao durante – desse tempo e de outros ainda mais antigos. Edifícios feitos de janelas e varandas, assistiram imoveis e invisíveis ao que se passou na rua, ao bom, ao mau, à agitação das pessoas, e ao esvaziamento no início da noite. Fizeram parte do despertar e do adormecer das cidades. As ruas ouviram nomes de pessoas, sentiram as emoções destas, o seu linguajar e os seus sotaques, o choro ou o riso das crianças, o relinchar de cavalos e o zurrar dos burros… por vezes foram agredidas pela roda de uma carroça que rompeu o pavimento ou um cunhal.
            E as gaivotas a sobrevoar as zonas ribeirinhas.
            Os edifícios e o espaço que os envolve assistiram à agressão entre iguais, à privação da liberdade e aos abusos em relação a esta. Viveram o engenho das trocas comerciais, o encontro e desencontro entre apaixonados, a ansiedade do carteirista, a humildade do pedinte e o ódio do assassino. Registaram o assobio, o pregão, o tocar do sino, o faducho cantado com cheiro de peixe frito, o cortejo de carnaval e o cortejo fúnebre, e conhecem o levitar das almas vibrantes ou adormecidas de cada um. Uns nascem, outros morrem, a roda do tempo comanda tudo e os sítios permanecem renovando-se em cada dia de sol ou de chuva, contrariando epidemias, injustiças, martírios, torturas e festas populares, em cada dia diferentes do anterior, mas sempre grávidos de história e de memórias.
            Umas cidades são livres, outras prisioneiras, algumas estão dentro das outras, mudando de face consoante a estação do ano. Umas são grandes metrópoles, outras são pequeninas, com terraços, telhados, campanários, cúpulas e claraboias que se aproximam do céu, ora luminoso, ora plúmbeo, ora escuro como breu. Umas crescem pelos novos caminhos que as ligam às outras suas irmãs, e algumas crescem para o céu, muitas vezes numa paranoia competitiva de ser melhor e mais importante do que as suas iguais.
            Em cada época os cidadãos usufruem aquele momento, aquele dia, aquela década, mas só os curiosos e estudiosos da toponímia (fio condutor ao passado), conseguem entender esta dimensão do olhar da memória. Há edifícios que são demolidos, traçados viários que se alteram, os moradores mudam, mas o sítio permanece sagrado aguardando o futuro, com uma grande carga de vivências.
            Quando regressamos a um sítio onde vivemos, abraça-nos um sentimento de pertença, feito de diversos segmentos que integram a nossa identidade – uma pequena memória resgatada do sítio.
            Segundo Italo Calvino em As cidades invisíveis, “… a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, das grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, dos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.”


In Revoltando os dias, NVR  8/05/2019

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