Os sítios, a história e
a necessidade de não esquecer
Nós seres
sociais, que habitamos em aglomerados, ruas, avenidas, alamedas, becos e
travessas, somos insensíveis, ou melhor, pouco atentos à nossa envolvente
(espaço e tempo). Despertamos para uma montra, os locais onde podemos
estacionar, as ruas que mais rapidamente nos levam de um local a outro, o sítio
da feira, um jardim qualquer, o shopping,
o cinema, o teatro e uma igreja barroca que nos assalta o olhar pela sua
exuberância. Por vezes sabemos o nome da rua, raramente sabemos a razão da
toponímia e quase nunca sabemos o que se passou naquela rua, há 10, há 100, há
500 anos. Esquecemo-nos que os sítios e as suas construções são testemunhos mudos
da nossa história.
Já
imaginaram como seria interessante chegarmos a uma rua e conseguirmos, talvez
com uns óculos virtuais, sintonizar o passado? Se pudéssemos olhar para uma
gravura de um local, suspensa numa parede, e ela ganhasse movimento e vida,
poderíamos falar com as pessoas retratadas. Que perguntas lhes colocaríamos?
Para quem me
lê pode pensar que comi cogumelos mágicos ao almoço, devido à utopia desta ideia.
Não comi. Hoje é dia 25 de abril e amanheci a ver um filme inédito da RTP sobre
a cidade do Porto, realizado nas ruas da cidade, no dia 26 de abril de 1974. As
novas gerações passam pelo actual Museu Militar, localizado no Largo Soares dos
Reis, e não imaginam que no dia 26 de abril de 74, aquele largo estava cheio de
cidadãos inquietos, aguardando o que os militares iriam fazer à PIDE/DGS, com
sede nesse edifício. As pessoas sorriam, com expectativa nos olhares e uma
esperança colectiva indisfarçável, vivendo um momento histórico irrepetível.
Esses momentos foram-se diluindo ano após ano, sobrevivendo apenas o reconto,
também cada vez mais esfumado.
Os edifícios
assistiram a tudo, ao antes, ao depois e ao durante – desse tempo e de outros
ainda mais antigos. Edifícios feitos de janelas e varandas, assistiram imoveis
e invisíveis ao que se passou na rua, ao bom, ao mau, à agitação das pessoas, e
ao esvaziamento no início da noite. Fizeram parte do despertar e do adormecer
das cidades. As ruas ouviram nomes de pessoas, sentiram as emoções destas, o
seu linguajar e os seus sotaques, o choro ou o riso das crianças, o relinchar
de cavalos e o zurrar dos burros… por vezes foram agredidas pela roda de uma
carroça que rompeu o pavimento ou um cunhal.
E as
gaivotas a sobrevoar as zonas ribeirinhas.
Os edifícios
e o espaço que os envolve assistiram à agressão entre iguais, à privação da
liberdade e aos abusos em relação a esta. Viveram o engenho das trocas
comerciais, o encontro e desencontro entre apaixonados, a ansiedade do
carteirista, a humildade do pedinte e o ódio do assassino. Registaram o
assobio, o pregão, o tocar do sino, o faducho cantado com cheiro de peixe
frito, o cortejo de carnaval e o cortejo fúnebre, e conhecem o levitar das
almas vibrantes ou adormecidas de cada um. Uns nascem, outros morrem, a roda do
tempo comanda tudo e os sítios permanecem renovando-se em cada dia de sol ou de
chuva, contrariando epidemias, injustiças, martírios, torturas e festas
populares, em cada dia diferentes do anterior, mas sempre grávidos de história
e de memórias.
Umas cidades
são livres, outras prisioneiras, algumas estão dentro das outras, mudando de face
consoante a estação do ano. Umas são grandes metrópoles, outras são pequeninas,
com terraços, telhados, campanários, cúpulas e claraboias que se aproximam do céu,
ora luminoso, ora plúmbeo, ora escuro como breu. Umas crescem pelos novos
caminhos que as ligam às outras suas irmãs, e algumas crescem para o céu,
muitas vezes numa paranoia competitiva de ser melhor e mais importante do que as
suas iguais.
Em cada
época os cidadãos usufruem aquele momento, aquele dia, aquela década, mas só os
curiosos e estudiosos da toponímia (fio condutor ao passado), conseguem
entender esta dimensão do olhar da memória. Há edifícios que são demolidos,
traçados viários que se alteram, os moradores mudam, mas o sítio permanece sagrado
aguardando o futuro, com uma grande carga de vivências.
Quando
regressamos a um sítio onde vivemos, abraça-nos um sentimento de pertença,
feito de diversos segmentos que integram a nossa identidade – uma pequena
memória resgatada do sítio.
Segundo
Italo Calvino em As cidades invisíveis, “…
a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito
nos ângulos das ruas, das grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas
antenas dos pára-raios, dos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por
arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.”
In Revoltando os dias, NVR 8/05/2019
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