11 maio, 2017

COLCHAS NAS VARANDAS

 Colchas nas varandas 

            Sempre me impressionaram as multidões. Porque se juntam as multidões em torno de certas pessoas com objectivos pouco consensuais? Interrogo-me sempre sobre isso. O que as leva a estar e a entrar em euforia colectiva.

            De repente, não sei em que ano, talvez em 1965, vi-me numa janela do largo do Pelourinho número dez, em Vila Real, assistindo ao passeio de Sua Excelência o Contra Almirante Américo Tomás, com a esposa e a filha (feias de fugir), pela cidade de Vila Real, dentro de uma viatura de cerimónias dos bombeiros, vermelha, com muitos prateados e dourados, acenando para todos, especialmente para a fina flor vila-realense. Puseram-se colchas nas varandas e foi recebido em apoteose — aplausos, vivas, capas dos estudantes no chão para Sua Excelência pisar e caminhar... (22|05|1965)

                                   … colocam-se colchas nas varandas para receber alguém, porquê? Para ver passar as procissões religiosas e neste caso um presidente da república não eleito pelo povo?

            Nunca tinha visto nada igual, nem tanta gente junta. Foi um desfile triunfante, com chuva de papelinhos, polícia e grande reboliço entre os que gritavam “Vivas”. Provavelmente haveria uma comitiva, mas a minha focagem era aquele automóvel descapotável, antigo, vermelho, que eu nunca tinha visto, com um senhor vestido de branco, cheio de medalhas a acenar, a acenar…

            O meu pai não estava e tinha deixado a recomendação à minha tia, umas horas antes:

            — Aqui ninguém vai para a rua. Se quiserem ver, usem a janela. Passo por cá mais tarde.

            Fiquei aborrecida, pois eu adorava festas e ali que se adivinhava uma grande festa, eu tinha que ficar confinada a uma janela do 2º andar! As ordens do meu pai, nesta minha fase infantil, eram para cumprir, sem ousar qualquer reclamação.

            Claro que esta era mais uma manifestação de propaganda política do Regime do Estado Novo, a enfrentar problemas na opinião pública sobre as consequências da guerra colonial. Era preciso unir, era preciso reforçar a identidade dos portugueses em torno do império colonial, que começava a fraquejar.

 

            Porque se juntam as multidões?

            Na Alemanha, os alemães aplaudiram Hitler. Hitler falava às massas com os seus discursos inflamados e as massas estavam lá, para ver, ouvir, aplaudir e para o seguir. E também havia colchas nas varandas. Eu ainda não sabia onde ficava a Alemanha, mas já tinha visto na televisão as multidões e as colchas.

            As colchas penduradas nas varandas e nas janelas associam-se aos actos religiosos, mas a sociedade civil tem esta estranha tendência de usar este adorno para receber as autoridades, ou seja, favorecendo pelo aparato, e lamentavelmente contribuir para um certo endeusamento dos políticos. 

….

            Nessa noite ou noutra noite qualquer semelhante, pois as crianças nem sempre têm uma memória cronológica, feita de colchas coloridas, mas sim de retalhos…. retalhos, simples e ingénuos, regressámos à casa da aldeia, no Taunus 12 M azul dos meus pais. O automóvel era velho, a cair aos pedaços e estava habituado a carregar cimento e tijolos para as obras. Quando nevava, deixava entrar a neve pelo chão, junto aos pés de quem viajava atrás, normalmente eu, quando não queria viajar entre o meu pai e a minha mãe, no banco corrido da frente, pois essa localização fazia-me lembrar a minha condição de criança — carro velho, mas ainda capaz de realizar pequenas distâncias.

                        .… eu ia atrás, mais um casal de jovens, que nunca tinha visto. Sabia que um deles era meu primo. Uns tempos antes tinha ouvido falar duma peripécia qualquer com o meu pai, envolvido num pequeno sarilho, transportando este primo para Lisboa, com uma mala de conteúdo duvidoso, possivelmente subversivo. Uma história que poderia ter terminado mal, pois o meu primo decidiu sair do carro antes do final da viagem e o meu pai ficou com a referida mala, esquecida durante dois dias, no carro estacionado à frente do hotel onde se hospedara, sem saber o que fazer com ela, nem ao seu conteúdo desconhecido, até ao momento que decidiu abri-la. Livros, papeis, fios eléctricos, arames, alicates, chaves de fendas e outras ferramentas úteis para certas “intervenções urbanas revolucionárias”, eram o conteúdo da mala, que foi abandonada às escondidas, algures no Ribatejo.

            Era noite escura, eles entraram no carro num sítio qualquer, já fora da cidade de Vila Real, parecia que tudo estava a ser feito na clandestinidade, mas bem combinado. Eu, nessa noite, estava cheia de perguntas para fazer, que não chegaram a ser proferidas. O casal parecia alegre e simpático, mas havia ali um clima de muita reserva e contenção, o nervosismo acompanhou toda a viagem, penso que devido à minha presença, para eu não ouvir o que não devia, receando que pudesse contar a alguém, fazendo perigar a segurança e a paz de todos.

            Anos depois, descobri que se tratava de uma fuga à PIDE — o casal exilou-se na Suíça, regressando a Portugal apenas após a revolução de Abril. 

Publicado em "O fato que nunca vestimos" - Anabela Quelhas (2017)

ISBN: 978-972-8546-65-6




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