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COLCHAS NAS VARANDAS
Colchas nas varandas
Sempre
me impressionaram as multidões. Porque se juntam as multidões em torno de
certas pessoas com objectivos pouco consensuais? Interrogo-me sempre sobre
isso. O que as leva a estar e a entrar em euforia colectiva.
De repente, não sei em que ano, talvez em 1965, vi-me
numa janela do largo do Pelourinho número dez, em Vila Real, assistindo ao
passeio de Sua Excelência o Contra Almirante Américo Tomás, com a esposa e a filha
(feias de fugir), pela cidade de Vila Real, dentro de uma viatura de cerimónias
dos bombeiros, vermelha, com muitos prateados e dourados, acenando para todos,
especialmente para a fina flor vila-realense. Puseram-se colchas nas varandas e
foi recebido em apoteose — aplausos, vivas, capas dos estudantes no chão para
Sua Excelência pisar e caminhar...
… colocam-se colchas nas varandas
para receber alguém, porquê? Para ver passar as procissões religiosas e neste
caso um presidente da república não eleito pelo povo?
Nunca tinha visto nada igual, nem tanta gente junta. Foi
um desfile triunfante, com chuva de papelinhos, polícia e grande reboliço entre
os que gritavam “Vivas”. Provavelmente haveria uma comitiva, mas a minha
focagem era aquele automóvel descapotável, antigo, vermelho, que eu nunca tinha
visto, com um senhor vestido de branco, cheio de medalhas a acenar, a acenar…
O meu pai não estava e tinha deixado a recomendação à
minha tia, umas horas antes:
— Aqui ninguém vai para a rua. Se quiserem ver, usem a
janela. Passo por cá mais tarde.
Fiquei aborrecida, pois eu adorava festas e ali que se
adivinhava uma grande festa, eu tinha que ficar confinada a uma janela do 2º
andar! As ordens do meu pai, nesta minha fase infantil, eram para cumprir, sem
ousar qualquer reclamação.
Claro que esta era mais uma manifestação de propaganda
política do Regime do Estado Novo, a enfrentar problemas na opinião pública
sobre as consequências da guerra colonial. Era preciso unir, era preciso
reforçar a identidade dos portugueses em torno do império colonial, que
começava a fraquejar.
Porque se juntam as multidões?
Na Alemanha, os alemães aplaudiram Hitler. Hitler falava
às massas com os seus discursos inflamados e as massas estavam lá, para ver,
ouvir, aplaudir e para o seguir. E também havia colchas nas varandas. Eu ainda
não sabia onde ficava a Alemanha, mas já tinha visto na televisão as multidões
e as colchas.
As colchas penduradas nas varandas e nas janelas
associam-se aos actos religiosos, mas a sociedade civil tem esta estranha
tendência de usar este adorno para receber as autoridades, ou seja, favorecendo
pelo aparato, e lamentavelmente contribuir para um certo endeusamento dos
políticos.
….
Nessa noite ou noutra noite qualquer semelhante, pois as
crianças nem sempre têm uma memória cronológica, feita de colchas coloridas,
mas sim de retalhos…. retalhos, simples e ingénuos, regressámos à casa da
aldeia, no Taunus 12 M azul dos meus
pais. O automóvel era velho, a cair aos pedaços e estava habituado a carregar
cimento e tijolos para as obras. Quando nevava, deixava entrar a neve pelo
chão, junto aos pés de quem viajava atrás, normalmente eu, quando não queria
viajar entre o meu pai e a minha mãe, no banco corrido da frente, pois essa
localização fazia-me lembrar a minha condição de criança — carro velho, mas
ainda capaz de realizar pequenas distâncias.
.… eu ia atrás, mais um casal de jovens, que
nunca tinha visto. Sabia que um deles era meu primo. Uns tempos antes tinha
ouvido falar duma peripécia qualquer com o meu pai, envolvido num pequeno
sarilho, transportando este primo para Lisboa, com uma mala de conteúdo
duvidoso, possivelmente subversivo. Uma história que poderia ter terminado mal,
pois o meu primo decidiu sair do carro antes do final da viagem e o meu pai
ficou com a referida mala, esquecida durante dois dias, no carro estacionado à
frente do hotel onde se hospedara, sem saber o que fazer com ela, nem ao seu
conteúdo desconhecido, até ao momento que decidiu abri-la. Livros, papeis, fios
eléctricos, arames, alicates, chaves de fendas e outras ferramentas úteis para
certas “intervenções urbanas revolucionárias”, eram o conteúdo da mala, que foi
abandonada às escondidas, algures no Ribatejo.
Era noite escura, eles entraram no carro num sítio
qualquer, já fora da cidade de Vila Real, parecia que tudo estava a ser feito
na clandestinidade, mas bem combinado. Eu, nessa noite, estava cheia de perguntas
para fazer, que não chegaram a ser proferidas. O casal parecia alegre e
simpático, mas havia ali um clima de muita reserva e contenção, o nervosismo
acompanhou toda a viagem, penso que devido à minha presença, para eu não ouvir
o que não devia, receando que pudesse contar a alguém, fazendo perigar a segurança
e a paz de todos.
Anos depois, descobri que se tratava de uma fuga à PIDE — o casal exilou-se na Suíça, regressando a Portugal apenas após a revolução de Abril.
Publicado em "O fato que nunca vestimos" - Anabela Quelhas (2017)
ISBN: 978-972-8546-65-6
10 maio, 2017
Mas que aventura é esta, Madame?
(Publicado em NVR)