NORMAL, NORMAL
Parece
que temos a melhor colecção de coches do mundo. Não sei, mas o que temos é
francamente belo e deslumbrante sem dúvida alguma, constituindo uma grande
riqueza patrimonial. Já conhecia muitos dos exemplares expostos no novo museu,
das visitas ao Museu dos Coches original e também do Palácio de Vila Viçosa. A
maioria são peças sumptuosas, algumas barrocas, cheias de detalhes, viaturas de
gala e de passeio com tracção animal, construídas essencialmente em madeira, entre
o século XVI e XIX, para apoiar as deslocações da realeza portuguesa e dos seus
visitantes.
Sempre
que me deparo com uma viatura destas, imagino a história da gata borralheira.
Através da magia, a fada madrinha, voluntariosa, transformava rapidamente e
apenas com a sua varinha mágica, uma abóbora, numa esplendida carruagem, sem
perceber patavina de mecânica ou de marcenaria, sem fazer projectos, maquetes e
protótipos e, sem programas 3D e sem caderno de encargos, sem estar muito
preocupada com as leis do movimento, da aerodinâmica, da ergonomia e certamente
analfabeta em álgebra, aritmética e geometria, pois o prazo de validade das
suas criações nunca ultrapassava a meia-noite, prazo muito reduzido, quase
equivalente ao leite sem lactose ou ao requeijão (eheheh). Depois regresso ao
mundo real e sabendo que ainda não possuímos essa maravilha tecnológica, dos
contos de fadas, que é a fabulosa varinha, situo-me, vejo e avalio o trabalho
manual na construção de cada pormenor, com as ferramentas da época e agora as
operações de restauro, que suponho serem realizadas em continuidade, por
especialistas nestas coisas do carbono, da ferrugem, do caruncho e das térmitas
mais estranhas que adoram estar e reproduzirem-se nestas reais velharias, expostas
à humidade, à temperatura, à pressão atmosférica e à luz, gerando mofos, bolores
e outros agregados familiares pouco recomendados.
Desculpem as ironias, mas eu quero mesmo falar do
edifício. Para mim foi uma decepção já anunciada pelo que se foi tornando
visível durante a obra, semi-escondida e semi-visível. Nos dias de hoje, fazer
uma edificação daquela natureza, dimensão e custo, sem que ela garanta também,
para além da funcionalidade a que foi destinada, uma afirmação estética ao
nível da arquitectura do seu tempo, capaz de ser uma mais-valia numa cidade,
que marque a contemporaneidade de forma singular, é um verdadeiro tiro no pé.
Este edifício concebido pelo arquiteto brasileiro
Paulo Mendes da Rocha Prêmio Pritzker, em
parceria com os ateliês dos portugueses Ricardo Bak Gordon e Nuno Sampaio
integra o grupo de edifícios de Lisboa que não acrescentam nada à cultura
arquitectonica portuguesa e espero que não seja outra socratice
realizada nas entrelinhas. 35 milhões de euros previstos inicialmente para o
custo da obra, ir-se-ão transformar entre 200 a 300 milhões de euros, quando
ela for concluída. Entregaram-se projectos e obras a quem não sabe fazer
orçamentos ou os minimiza.
Um dos co-autores afirma que
pretende "fazer cidade a
partir da arquitetura" – pretende, mas não consegue. Fala bem,
argumenta melhor, cria uma teoria estruturante entre o edifício e a envolvente,
mas na prática, resolveu de forma vulgar, sem brilho, sem originalidade, sem genialidade,
que a localização e o programa mereceriam.
É pouco provável que
alguém se desloque de propósito a Lisboa para ver este edifício, por isso não
fará cidade, certamente. Há edifícios contemporâneos que fazem cidade ou já
fizeram, levando apreciadores de arquitectura a Lisboa, na época em que foram
construídos ou até mais tarde: o Centro Cultural de Belém, o Oceanário, a Torre
VTS, o Teatro Camões, o edifício Vodafone, a Caixa Geral de Depósitos, o Franjinhas,
a Torre do Tombo, a Gulbenkian, o Pavilhão de Portugal, o Adamastor, o Multiusos,
o novo Estoril Sol (Estoril), a Fundação Champalimaud, a Mesquita de Lisboa, A
Gare do Oriente; o Museu Paula Rego (Cascais), a Universidade Nova de Lisboa, a
Torre Monsanto, o Centro Ismaelita, o Heron Castilho, as Torres das Amoreiras, o
Castil, o Pavilhão do Conhecimento e a até aquela igreja louca, inacabada, do
Troufa Real, esta pelas piores razões… Neste momento para fazer cidade (Lisboa)
é preciso ultrapassar ou ombrear minimamente com Siza Vieira, Teotónio Pereira,
Vittorio Gregotti, Eduardo Souto Moura, Peter Chermayeff, Gonçalo Byrne, Charles
Correa, Tomás Taveira, Calatrava, Frederico Valsassina, Arsénio Cordeiro,
Conceição Silva e outros. Lisboa já tem uma coleção de boa arquitectura
contemporânea e portanto é preciso merecer para fazer cidade, não basta querer.
Dizem-me que a obra
ainda não está concluída, que faltam grandes painéis multimédia nas paredes
nuas interiores. Quanto a mim animará e enriquecerá o conteúdo, mas não o
edifício em si. Sorrio-me com as características apontadas pelos comentadores e
jornalistas, utilizando as palavras, geometria, brutalismo e minimalismo, como
se isso justificasse a pobreza estética do edifício e a falta de genialidade manifestada
pelos seus autores.
78 peças - coches,
berlindas, carruagens, cadeirinhas, carrinhos, liteiras, seges...
expostas num edifico normal, normal (imitando Ricardo Araújo Pereira no seu
boneco de calceteiro), que bem precisaria de uma varinha mágica com efeitos
especiais e permanentes.
Vale a pena visitar, pelos
coches. O resto funciona, mas não surpreende.
AQ – publicado em
Revoltando os dias no NVR 1/07/2015
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