A mãe despacha o jantar, porque vamos
na corrida de S. Silvestre. Eu não estou afobada, penso todos os minutos na
farra de garagem que já começou mal acabou o pôr-do-sol. Meus kambas abriram a
garagem, foram na fábrica do gelo, comprar gelo para encher 4 grandes tanques que
vão servir de geleira para as birras e colas, para umas e outras geladérrimas,
para esfriar o calor, a euforia e as hormonas aos saltos. Hoje a farra se estende para o exterior. Um
kamba leva um e outros, mais sanguita daqui e a vizinha, e garagem só, não chega.
As vedações do quintal se fecharam com folhas de palmeira e os mais
habilidosos, estenderam cabos para ter luz em todo o lado.
Está muito calor,
depois de uma chuveirada, visto blusa sem costas preta e calças La Finesse
brancas, de boca de sino, com cinto de argolas douradas e as sandálias de pneu
que me dão mais 5 anos de altura. Em cima dessas sandálias, passo dos 14 anos
directamente para os 19, podendo entrar no cinema mais de 17 e até entrar na
boite Adão, sem ninguém xingar. Coloco os meus anéis, as pulseiras douradas e negras e os colares
de missangas coloridas. Passo um Madame Rochas atrás das orelhas. A mãe chama:
- A comida está na
mesa, te despacha nesse quarto de banho!
Janto rápido, para
ter tempo de estar no espelho, para passar mais uma escova de rimmel, a
sombra fica para depois, porque o pai gosta de ver filha caçula com chipala ao
natural. Meto na carteira a sombra azul, o spray Halazon, para disfarçar o
cheiro das Negritas no regresso a casa, a escova do cabelo, porta moedas e o
meu talismã.
Descemos à rua e vamos a butes até à Avenida Brasil, é só atravessar uma rua. A S. Silvestre já
começou. Os passeios começam a encher. Me dizem que Carlos Lopes talvez passe
na frente.
- Ué, falam de quem?
Quem é esse muadiê? Só conheço Bernard Dzom.
Eu quero muito ver
esse Carlos Lopes a correr na frente, mas ele nunca mais passa! Não sei onde é
a partida, mas a meta é no Estádio dos Coqueiros. Na espera, viajo na
imaginação para a farra que me espera, já estarão a passar o "Reflection of my
life" ou "I put a spell on you"? Hum… a esta hora os rapazes devem estar a
combinar, quem dança com quem, quem estica os slows no seu sinal, quando se
dançará o "Je t’ aime, moi non plus"… já devem ter tudo organizado com o Cabeça
de Ginguba no gira-discos.
Uf, começa-se a ouvir
palmas e todos se esticam para ver passar Carlos Lopes. Fico a conhecer o tuga
do Sporting da metrópole, que passa bem juntinho a mim. Muitos gritam palavras
de entusiasmo. CARLOS LOPES! CARLOS LOPES!
Meus cotas não estão
com pressa de regressar a casa e eu olho o relógio de pulso da mãe, várias
vezes e finalmente, vamos no regresso.
Quem já estará na
farra? Convenço a mãe a ir a casa buscar a minha multa (bolo de bolacha) e
finalmente ir merengar, dançar sheik e slow… bem não é bem dançar slow, é mexer
os pés sem sair do lugar, das músicas mais românticas que há no mundo, enquanto
alguém desliga algumas luzes. Espero que ele esteja lá e me convide para dançar
o slowzão, daqueles que duram para a eternidade, dá para ir da Corimba até Catete.
Alguns rapazes combinam
com o Cabeça de Ginguba, se lhe piscam o olho direito é para esticar o slow, recuando a
agulha para o início da música, para ficarem agarradinhos à miúda que gostam,
muito mais tempo. Se algum ciumento piscar o olho esquerdo, é sinal para a música avançar mais rápido e terminar antes do fim, para evitar que a miúda de quem gostam
esteja muito tempo a dançar com outro manguela qualquer. Por vezes o Cabeça de Ginguba, baralha tudo e dá maka discreta, com ameaças, não bebes mais Cucas, ou com lamentos, estragaste-me a noite, pá! m'irmão afinal tás de qual lado mesmo?
In “Ensaios de escrita,
um projecto sempre adiado” Anabela Quelhas 2024
Sem comentários:
Enviar um comentário